Parábolas x Fábulas - A diferença entre o reino de Deus e o reino da fantasia
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Fábulas. Quem não as ouviu quando criança? Quem nunca adormeceu enquanto sua mãe as contava? Elas servem para entreter e estimular a imaginação das crianças. Pelo menos, a intenção de quem as conta geralmente é esta. O problema começa quando o indivíduo chega à vida adulta insistindo em viver num mundo de fantasia parecido com o dos contos de fada.
O apóstolo Paulo diz que haveria tempo em que as pessoas já não suportariam a sã doutrina, isto é, a verdade por si só, e como quem tem comichão nos ouvidos, se cercariam de mestres prontos a alimentar suas fantasias. “E desviarão os ouvidos da verdade, voltando-se às fábulas” (2 Tm.4:3-4).
Uma dose de fantasia é sempre bem-vinda, pois amortece o impacto produzido pela realidade em nossa alma. Todavia, pessoas em posse de suas faculdades mentais sabem diferenciar entre fantasia e realidade. Somente os psicóticos e esquizofrênicos não conseguem distingui-las.
Recentemente escrevi um artigo em que menciono uma pesquisa feita nos Estados Unidos que revelou que o ofício pastoral estaria entre os mais procurados por psicopatas. Um líder num surto psicótico poderia promover um enorme estrago na vida de seus fiéis. Com seu carisma e dom de persuasão, ele poderia convencer seus liderados a embarcar em sua fantasia. Bastaria um culto com forte apelo emocional para que a histeria coletiva se instalasse e as pessoas suspendessem momentaneamente o seu senso crítico. Isso explica, por exemplo, o que ocorreu recentemente numa igreja em Garankuwa, na África do Sul, onde o pastor ordenou que os membros de sua igreja comessem a grama do lado de fora do templo, alegando que com isso estariam mais perto de Deus. Surpreendentemente, as pessoas embarcaram em seu surto e se puseram a pastar como animais. Seriam elas discípulos de Jesus ou de Nabucodonosor? rs Outro caso alarmante foi o protagonizado pelo Reverendo Jim Jones em 1978, quando mais de novecentas pessoas foram convencidas a se suicidarem, depois de terem migrado dos EUA para a Guiana sob sua orientação.
Não desprezemos o poder alucinógeno que tem as fábulas. Na pior das hipóteses, elas são capazes de provocar delírios e alucinações, alienando-nos da realidade.
Quando os poderosos perceberam o potencial entorpecedor das fábulas, trataram de adotá-las como instrumento de dominação.
Mesmo as verdades do Evangelho podem ser de tal maneira pervertidas que acabem se tornando em fábulas e se pondo à serviço dos poderosos.
Sabendo que os riscos eram reais e que o dia de sua partida se aproximava, Pedro escreveu:
“Mas também eu procurarei em toda a ocasião que depois da minha morte tenhais lembrança destas coisas. Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente compostas; mas nós mesmos vimos a sua majestade.” 2 Pedro 1:15-16
Como diferenciar o Jesus do Evangelho e o Gezuis das fábulas, o Cristo real e o Cristo genérico?
Se as fábulas se tornaram num recurso retórico para o entorpecimento e adestramento da população, as parábolas eram o recurso predileto de Jesus para despertar e chamar as pessoas de volta à realidade. Tanto as fábulas quanto as parábolas são estórias fictícias, porém, têm elementos, desdobramentos e objetivos bem diferentes. Se as fábulas pervertem, as parábolas subvertem.
Vejamos os elementos comuns às fábulas e que as diferenciam das parábolas contadas por Jesus.
O cenário das fábulas é sempre um lugar bem distante e extraordinário, um reino mágico, uma floresta encantada, um país das maravilhas. Assim, o ouvinte é arrebatado, deixando sua dura realidade para explorar lugares só acessíveis à imaginação. Já as parábolas contadas por Jesus tinham como cenário o chão da vida, o cotidiano das pessoas, o dia-a-dia de gente comum.
Toda fábula tem um herói. Geralmente, um príncipe encantado. Alguém que salva a mocinha indefesa das garras do dragão ou da rainha má. Ele não vem das classes humildes. Não é um trabalhador braçal. É um membro da realeza. Um bravo e valente príncipe. Não é à toa que nosso povo, adestrado pelas fábulas, nutre a expectativa de que um dia alguém virá em sua defesa. Trata-se de um messianismo falso, alimentado por uma esperança fantasiosa. Foi esta esperança que colocou Collor no poder. O caçador de marajás parecia a resposta aos nossos mais profundos anseios por justiça. Deu no que deu...
As parábolas de Jesus não tem mocinhos nem bandidos. Não há lugar para heróis. Nelas a ambiguidade de nossa humanidade é exposta. Nossos preconceitos são postos à prova. De quem se espera socorro, recebe-se indiferença. E quem deveria ser vilão, inusitadamente se comporta com altruísmo e compaixão. A mocinha indefesa da fábula se transforma no povo chamado a ser protagonista de sua própria história em vez de ficar aguardando passivamente o beijo do príncipe.
Não há maçãs enfeitiçadas nas parábolas. Não há nada de que os poderosos nos convençam que não possamos tocar, nem mesmo nos aproximar. Paulo denuncia este instrumento de dominação:
“Tendo cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens (...) Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, envolvendo-se em coisas que não viu (...) Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: Não toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne.” Colossenses 2:8,18,20-23
Os poderosos usam e abusam da ignorância das pessoas para manipulá-las a seu bel-prazer. Foi assim que os senhores de engenho convenceram os escravos a não comerem as mangas, produto recém-chegado ao Brasil e que prometia trazer muitos lucros. Alegavam que comer manga e beber leite podia levar à morte. Séculos depois, ainda damos crédito a esta fábula ridícula sem qualquer embasamento científico.
Igualmente, há um evangelho que alimenta superstições, levando as pessoas a evitarem certos ambientes e comportamentos, não por consciência, mas por medo de serem ‘enfeitiçadas’ ou de darem ‘legalidade’ ao maligno. De fato, só a verdade liberta. A mentira amordaça e idiotiza.
Toda fábula esboça uma moral. Aquela que serve aos interesses das classes dominantes. “Qual é mesmo a moral da estória?” é a pergunta que paira no ar. Já as parábolas de Jesus demonstram preocupação com questões éticas que seguem pertinentes independentemente da época, da cultura e do lugar.
Algumas parábolas parecem pegadinhas que visam expor nosso senso de moral contraditório.
Não importa qual seja o enredo, todas as fábulas têm final feliz. O que começa invariavelmente com “era uma vez”, termina com “e foram felizes para sempre”. Quem não gostaria que fosse assim na vida real?As parábolas de Jesus rompem com este clichê. Algumas nem sequer parecem terminar. As estórias contadas por Jesus não terminam com final feliz, simplesmente porque elas não terminam. A trama humana segue em aberto. A vida segue seu ritmo. Há espaço para contingências e eventualidades. Fábulas falam de certezas. Parábolas falam de surpresas.
Quando parecia que Jesus ia dar o arremate da estória, ele introduz uma situação inusitada.
Se uma fábula como a da Branca de Neve fosse uma parábola, ela não teria o desfecho que teve. Depois do beijo que quebrou o feitiço da maçã que lhe fora ofertada pela rainha má, a Branca de Neve se casaria, teria filhos, e viveria muitas outras coisas, nem todas tão felizes. Ninguém fica feliz para sempre. Um casamento, por mais maravilhoso que seja, um dia termina, seja pelo divórcio ou pela morte. Haverá dias de sol, mas também dias nublados. Haverá risos, mas também lágrimas em abundância.
De acordo com as fábulas, o objetivo da vida humana é a sua própria felicidade. As parábolas nos sugerem outros objetivos: o bem comum e a glória para Deus.
Enquanto as fábulas nos apresentam um mundo de fantasia, as parábolas revelam como deve funcionar o mundo sob os princípios que regem o reino de Deus.
Depois de terem ouvido Jesus contar inúmeras parábolas, sem conter a curiosidade, os discípulos o cercaram e perguntaram: “Por que lhes falas por parábolas? Ele, respondendo, disse-lhes: Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus (...) bem-aventurados os vossos olhos, porque veem, e os vossos ouvidos, porque ouvem. Porque em verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vós vedes, e não o viram; e ouvir o que vós ouvis, e não o ouviram ” (Mateus 13:10,16-17).
A noção que muitos têm do reino de Deus tem mais a ver com as fábulas do que com as parábolas de Jesus. Imaginam um reino num lugar mui, mui, mui distante, para além do sol e das estrelas. Ou, quem sabe, numa dimensão paralela. Para estes, o reino ainda não veio. Foi ofertado por Jesus durante Seu ministério terreno, porém, teve que ser adiado. Todavia, um dia ele virá de maneira estrondosa, com direitos a efeitos especiais dignos de um filme de Steven Spielberg. Nada mais distante da verdade do que isso.
Em uma de Suas parábolas, Jesus diz que “o reino dos céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem, pegando nele, semeou no seu campo; o qual é, realmente, a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das plantas, e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus ramos” (Mt.13:31-32). Portanto, o reino não vem com aparência majestosa. Uma de suas principais características é a discrição. Na parábola seguinte, Ele compara o reino de Deus “ao fermento, que uma mulher toma e introduz em três medidas de farinha, até que tudo esteja levedado” (Mt.13:33). Portanto, o reino não se manifesta de maneira espetaculosa, mas vai se infiltrando sorrateiramente nas estruturas erigidas pelo gênio humano.
Preferimos confundir a realidade do reino de Deus com o que seria um mundo ideal, onde as coisas sempre começassem e terminassem bem, sem choro, nem sofrimento ou morte.
O ideal do reino, porém, está mais para utopia do que para fantasia. Utopia é aquilo que nos move na direção do horizonte, ainda que a cada passo que dermos, o horizonte pareça se distanciar. Sonhamos com um mundo onde impere a justiça, a verdade e o amor. Um mundo sem guerras, pestes, exploração e violência. Todavia, este mundo com que sonhamos não deve ser esperado, mas perseguido. Ele não está em algum outro lugar. Ele está no futuro. Em vez de aguardarmos uma intervenção divina, devemos arregaçar as mangas e trabalhar como instrumentos usados por Deus na edificação do Seu reino na terra. A intervenção divina já aconteceu no momento que nos foi enviado o Seu único Filho, e posteriormente o Seu Espírito para nos habilitar ao cumprimento do Seu propósito. O futuro, portanto, precisa ser construído, ainda que, do ponto de vista de Deus ele já seja real.
A fantasia produz letargia. A utopia nos impulsiona a caminhar. A fantasia nos anestesia. A utopia nos dá um choque de realidade, sem, contudo, permitir que nos conformemos a ela.
Dentre as várias parábolas registradas nos evangelhos sinóticos, as duas mais conhecidas são, sem dúvida, a do filho pródigo e a do bom samaritano.
Proponho aqui um exercício de imaginação para revermos estas parábolas em camadas.
Na parábola primeira, o filho mais novo pede ao pai que lhe dê sua parte na herança. O pai, por ser justo, resolve repartir a herança entre ele e seu irmão mais velho. O caçula deixa sua casa e gasta tudo o que recebera com orgias e jogatina. Sem dinheiro, humilhado e tendo que trabalhar cuidando de porcos, cai em si e resolve voltar para a casa do pai e pedir-lhe uma chance. Surpreendentemente, o pai não apenas o recebe, mas promove uma festa para recepcioná-lo. O filho mais velho, enciumado, recusa-se a participar da festa.
Se vivêssemos num mundo ideal, o irmão mais velho celebraria a volta do irmão, certo? Mas, espera aí... num mundo ideal, seu irmão jamais teria gastado tudo com mulheres e farra. Ou ainda: num mundo ideal, ele nem mesmo teria abandonado o seu pai àquela altura da vida. A propósito, por que o mais velho não se manifestou quando o caçula requereu sua parte na herança? Talvez, por ter percebido que ele também seria beneficiado, recebendo sua parte na herança. Num mundo ideal, ele chamaria seu irmão para conversar e o dissuadiria daquela loucura. Porém, o fato é que não vivemos num mundo ideal, tampouco num mundo de fantasias. No mundo real, filhos torram o que custou aos pais uma vida inteira de trabalho árduo. No mundo real, irmãos sentem inveja entre si por se acharem preteridos por seus pais. Onde o reino de Deus entra nisso tudo? Como um reino real e justo opera num mundo real e injusto?
Já que o filho mais novo requereu sua parte... Que o pai reparta com equidade entre ambos os filhos. Já que o pródigo perdeu tudo... Que ele caia em si, se arrependa de sua loucura e tome o rumo da casa do pai. Já que filho rebelde retornou arrependido... Que o pai lhe dê uma festa de recepção. Já que o filho mais velho se recusa a celebrar a volta do irmão... Que o pai vá ao seu encontro e o convença de entrar na festa. Se fosse uma fábula, a estória teria terminado com o irmão mais velho dançando ao lado do resto da família, abraçado ao pai e ao seu irmão pródigo, e, assim, foram felizes para sempre. Em vez disso, a estória termina com o pai argumento com seu primogênito. O que ele teria feito, então? Jamais saberemos. Todavia, podemos saber o que nós mesmos faremos numa situação que demande uma postura semelhante.
Na segunda parábola, um homem é assaltado e deixado semimorto à beira da estrada. Vem um sacerdote e finge não ver. Vem um levita e faz o mesmo. Até que surge um samaritano, e para surpresa de todos, não só lhe presta os primeiros socorros, como também o coloca em sua cavalgadura, leva-o para uma hospedaria, paga a conta do seu tratamento e pede que o dono não economize, caso seja necessário. Na volta, ele passaria por lá e acertaria a conta.
Num mundo ideal, o sacerdote e o levita jamais se recusariam a socorrer àquele moribundo. Num mundo ideal, os ouvintes de Jesus jamais teriam ficado surpresos com a atenção dispensada por um samaritano a um judeu naquelas condições. Não haveria preconceito num mundo ideal. Num mundo ideal, aquele homem nem sequer teria sido assaltado. Num mundo ideal, certamente não haveria assaltantes nas estradas. Mas, definitivamente, este não é um mundo ideal. Coisas ruins acontecem a qualquer um. Nem mesmo os justos estão imunes a isso.
Então... já que há assaltantes na estrada, bom seria que aquele homem não viajasse sozinho. Mas, já que viajava só e foi assaltado... Que quem quer que passe por ali, sem importar sua posição social ou seu credo religioso, pare para prestar-lhe socorro. Já que o sacerdote e o levita se recusaram a parar... Que entre em cena aquelaeque passou a vida inteira sendo alvo de bullying e chacotas por parte dos judeus, e preste o devido socorro àquela vítima sem perguntar-lhe nada.
Num mundo ideal não haveria aborto. Mas já que meninas são estupradas e no momento do desespero acabam optando pelo aborto... Que haja quem as acolha, sem condená-las. Que seu sofrimento seja atenuado.
Num mundo ideal não haveria divórcio. Mas no mundo real, há. Então, que nos habilitemos a acolher os que foram machucados por este tão dolorido processo, sem julgá-los ou discriminá-los.
Num mundo ideal todos sentiríamos atração por pessoas do outro sexo, e assim, não veríamos casais formados por indivíduos do mesmo gênero. Porém, no mundo real as coisas nem sempre são assim. Há mais homossexuais do que imaginamos, inclusive dentro das igrejas. Boa parte deles prefere manter-se no armário para não sofrer discriminação. Então, deixemos de lado nossos preconceitos idiotas e tratemos de acolhê-los com amor.
Num mundo ideal não há drogas. No real, há. Logo, qual deve ser nossa postura ante tão sério e crônico problema social?
Num mundo ideal não há cadeias superlotadas, nem mesmo criminosos para serem presos. Já que isso é coisa do mundo real, então, vamos visitá-los.
Num mundo ideal há acontecem tragédias naturais. Em nosso mundo, sim. O que é que estamos fazendo de braços cruzados? Saiamos ao encontro de suas vítimas, solidarizando-nos com a sua dor.
Num mundo ideal não há fome. No real, sim. Então, repartamos o nosso pão com os que nada têm. Deixemos de apontar o dedo acusador e estendamos as mãos, as mesmas que usualmente levantamos ao céu em adoração a Deus.
Hermes Fernandes é chapa do Genizah
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