O RETORNO DE HITLER
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Uma
das figuras mais sombrias do século 20 foi o ditador nazista Adolf
Hitler. O artista desiludido austríaco conseguiu crescer na política
alemã dos anos 30 até tornar-se o chanceler de um pretenso império
germânico que acabaria se desmoronando em 1945, com o final da Segunda
Guerra Mundial. As terríveis decorrências do governo de Hitler ainda
hoje nos causam espanto e pavor. Além da perseguição deflagrada contra
os judeus, bastante conhecida e divulgada, e dos campos de concentração
criados pelo regime nazista, Hitler foi o causador direto e indireto de
atrocidades imensuráveis. Conforme as estimativas, a Segunda Guerra
Mundial deixou cerca de 70 milhões de mortos, sendo mais de 24 milhões
de russos, 20 milhões de chineses, 7.5 milhões de alemães e 6 milhões de
judeus. Destes, 60% eram civis. A perseguição e os maus tratos
atingiram diversas comunidades como ciganos, eslavos, homossexuais,
judeus, evangélicos e comunistas. Um dos principais mártires evangélicos
do período nazista foi Dietrich Bonhoeffer. Entre os teólogos renomados
que perderam sua posição por causa da intolerância Führer, destacam-se
Karl Barth e Paul Tillich.
As
propostas imperialistas e racistas de Hitler chocaram o mundo por sua
frieza no processo de condenação, prisão e assassinato dos “indesejados”
para o sistema. O assassinato de milhares de pessoas calculado e
premeditado associado às experiências genéticas e científicas cruéis e
desumanas deixaram o mundo consternados. Estávamos diante de um império
da morte.
No
entanto, parece que a percepção desta realidade está mudando. A
consternação perdeu espaço nos últimos anos. Rencentemente, por exemplo,
conversei com alguém que comentou uma aula de filosofia. Nela a
professora afirmou a lógica da sociedade relativista: “o que Hitler fez é
errado para nós, mas para eles estava certo. Cada cultura e sociedade
decide o que acha certo ou errado.”
Voltando
a atenção para a perspectiva bíblica, vamos encontrar o fato de que
Deus é descrito como o Deus que dá a vida e tem poder sobre ela (Dt
30.15; 1Sm 2.6; Ne 9.6). Em grande parte, a teologia do Antigo
Testamento é uma teologia da vida. A relação de polarização “vida-morte”
marca muito da revelação das Sagradas Escrituras. O primeiro pecado
humano tem como retribuição o castigo da morte (Gn 2.17). Em seguida, o
que é vedado ao homem, que deseja indepedência de Deus, é a árvore da
vida (Gn 3.22-24). Toda impureza ritual que encontramos em Levítico está
relacionada com a morte. Os animais ligados à morte (carnívoros e
rastejantes) não podem ser comidos (Lv 11). A impureza do fluxo do homem
e da mulher os tornam imundos (Lv 15), pois o que era para ser vida
tornou-se morte. Toda a promessa de bênção para Israel envolve bênçãos
da terra e de prosperidade, que são, em resumo, uma celebração da vida.
Basta ler as decorrências da aliança de Deus com Israel em Deuteronômio
27-29 e observar como a distinção básica é bênçãos para a vida e ameaças
que significam morte. O salmista louva a Deus e clama ao Senhor por
causa daquilo que representa a diferença entre a vida e a morte (e.g. Sl
30). A renovação da promessas de Deus por ocasião do exílio está
claramente apresentada por Jeremias: “Ponho diante de vocês o caminho da
vida e o caminho da morte” (21.8). Quando chegamos ao Novo Testamento, a
polaridade permanece, agora, porém, o enfoque é distinto. A qualidade
de vida sobe! A vida que está em vista é de qualidade plena e superior é
a vida eterna (Jo 3.16). O próprio Jesus é “o caminho, a verdade e a
vida” (Jo 14.6). Já a morte absoluta descrita no Novo Testamento também é
a morte eterna.
Conforme
podemos observar, o Deus da Bíblia cria, enfatiza, valoriza e concede
vida e vida em plenitude (Jo 10.10). Quem crê tem vontade de viver e
razão para celebrar a vida. Para falarmos sobre isso, é preciso entender
que a vida é um valor importante nas Escrituras por causa da
perspectiva bíblica da realidade. Segundo as Escrituras, o ser humano é
imagem de Deus (Gn 1.26), o que lhe dá significado no universo e
dignidade intrínseca. O homem possui origem e propósito definidos e
caminha teleologicamente para um destino, sob o domínio divino. O ser
humano sobrevive após a morte e terá de prestar contas de sua vida a
Deus, o justo juiz. Neste sistema bíblico, faz sentido viver. Todavia,
quando isso é deixado de lado, o sistema desmorona e passamos a caminhar
na direção de uma cultura “da morte”.
Será
que é sem razão e explicação que vivemos numa sociedade que banalizou o
aborto e que trivializou a violência? Por que, à semelhança do
paganismo greco-romano antigo, há uma obsessão crescente na sociedade
pela morte e pela violência? Há uma sede de sangue no ar! Os filmes de
terror, obsessão máxima pela morte, tornaram-se divertimentos triviais. É
a triste universalização do “Halloween” americano. Não é assustador e
estarrecedor observar a busca da morte nas drogas e nas experiências
radicais sexuais e religiosas que rondam o público adolescente e
juvenil, em pleno vigor da vida? Por que grupos de rock como ACDC, Kiss e
Sepultura fazem sucesso e cativam tantos fãs? Como entender a epidemia
mundial de suicídio, principalmente em países abastados, incluindo
crianças e adolescentes? O que está acontecendo conosco? Socorro! Parem o
mundo que eu quero descer! A irrelevância e a fascinação da morte nos
assustam!
O
fato é que, sem o Deus da vida, caminhamos para a morte. Estamos de
novo sob a sombra de Hitler, filho lógico da sociedade secular,
pós-nietzscheana. A verdade é que a sociedade secular, que se enraizou
na cultura ocidental nos últimos quatro séculos, a partir da natureza e
do homem, não tem base para estabelecer e defender o valor da vida e do
ser humano. Sem Deus, o homem está morto. Sem Deus, não há paradigmas, e
sem paradigmas absolutos, não há razão para viver. Sentimos a maresia e
a náusea dos escritos existencialistas ateus. Por que o racismo de
Hitler deve ser condenado? Em que base? Se o ser humano não tem valor
intrínseco, por que uma etnia específica teria algum valor? Se não há
parâmetros para definir o que é certo e errado, como dizer que Hitler
cometeu crimes contra a humanidade? O americano imperialista belicoso, o
terrorista radical islâmico, o índio que comete infanticídio e o
neonazista homicida estão todos corretos em seus próprios pontos de
vista! Só resta a voz (ou a arma) do mais forte para impor a lei, neste
admirável mundo bárbaro.
Nossa
sociedade está em crise. O fato é que em muitos países, assassinos são
hoje protegidos pela lei. O aborto tornou-se “direito” e sinal de
“avanço”. O suicídio tornou-se “requinte” de sociedades sofisticadas. O
nível de barbárie dos crimes apavoraria até os carrascos de Auschwitz:
“Vemos pedofilia seguida de morte, canibalismo, chacinas, crianças homicidas, suicídio coletivo, etc.” Onde vamos parar?
A sociedade secular, com seu humanismo, ateísmo e agnosticismo, nunca foi
coerente com seus pressupostos. Embora crítica do cristianismo, sempre
viveu de seus valores. No secularismo ateu não há lugar para a
misericórdia, a caridade, o amor e a esperança. Os ateus e agnósticos
vivem, na prática, com idéias cristãs de amor, igualdade, perdão, etc. A
grande pergunta é: “o que acontecerá conosco quando tivermos gerações
criadas sem a influência cristã?” Se Deus não existe e não juízo final, e
a vida é apenas agora, um mero acidente que deu certo, a lógica
necessária é a selvageria. O que vale é aproveitar ao máximo o pouco que
temos neste mundo sem lei e sem lógica. A questão se torna muito mais
relevante quando vemos a barbárie crescente presente em nosso cotidiano e
o surgimento de uma nova empreitada hostil de ateus e agnósticos contra
a expressão religiosa, particularmente contra o cristianismo,
exemplificada na obra recente de Richard Dawkins. Se não considerarmos a
história de nossa tradição ocidental, com sua herança cristã e suas
decorrências, corremos o sério risco de ver uma versão piorada do que
foi o nazismo; seria o “retorno de Hitler”.
Luiz Sayão é pastor da Igreja Batista Nações Unidas (São Paulo, SP), é tradutor da Bíblia, tendo coordenado a publicação da Nova Versão Internacional, entre outros projetos. Atualmente, coordena a publicação da primeira Bíblia Brasileira de Estudos da Editora Hagnos.