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Remoto e insignificante

Braulia Ribeiro

Estou em Palau, país parte da República da Micronésia. Ninguém aqui jamais ouviu falar do Ronaldinho, e eles tem dificuldade de entender como o futebol pode ser interessante sendo que são tantos homens atrás de uma só bola (comentário literal que ouvi de um rapaz quando falei sobre futebol). 

A população é de 20 mil habitantes, mas muitos deles nem moram aqui. O governo conta assim mesmo os filhos da terra que estudam e moram fora, senão nem sobra ninguém.

Nos últimos dois séculos foram dominados pelos alemães, depois pelos japoneses e após a II Guerra ficaram como protetorado americano. Só  começaram a ter governo independente em 1994.

No começo a impressão foi de estar em alguma cidade amazônica com o mofo a cobrir as casas, o calor sufocante e a sensação de completo isolamento. Fui convidada a dar uma palavra a um grupo de líderes cristãos. Comecei  contando minhas histórias da Amazônia, me referindo ao isolamento da tribo Suruwahá e à aparente insignificância da população. Contei de como apesar de minúscula a tribo acabou sendo o gatilho do  movimento que varreu a nação contra a conivência legal ao infanticídio.
Depois da reunião muitos vieram falar comigo dizendo que tiveram vontade de ir a Amazônia visitar lugares remotos. Não entenderam a metáfora nem o encorajamento.  Afinal o que é remoto e o que é insignificante?

Num mundo redondo nada é remoto. Só se considerarmos a relação de distância com algum outro local que se considera central.  Central aos olhos de quem? Nova York é central para os novaiorquinos, mas Deus olha pra todos com igual expectativa.  Quem compara não é sábio diz a Bíblia, e volto às minhas conjeturas percebendo a centralidade de Palau.

Visitamos a cadeia no domingo de manhã. No centro da cidade fica o Ministério da Justiça e logo atrás a cadeia pública. As leis são rígidas. Uma quantidade mínima de heroína pode te condenar a 25 anos de reclusão me explica o preso olhando para baixo, em Guam, território americano, pode mais, diz ele.  Vergonha em todos os olhares ao redor do círculo de cadeiras plásticas, cantando Amazing Grace com os olhos baixos. A palavra vergonha não soa bem em português mas na cadeia é um sinal muito bom. Sinal de que eles não se justificam na vida que levavam mas se envergonham dela. A vergonha precede o arrependimento. Os homens pedem para falar depois, homens jovens e velhos com muita convicção de querer mudar.

Na saída fomos ver a loja com a mais bonita produção artística local: as storyboards placas de madeira talhadas que contam com detalhes histórias e lendas dos antigos. São os presidiários os únicos que ainda se dedicam a esta produção cultural importante, aprendida dos velhos. A cadeia é um ponto turístico por isto.  Me parece invertida a situação, quem vive em liberdade não percebe a riqueza da cultura sendo relegada apenas aos marginalizados sociais.  Ou talvez quem não entendeu nada sou eu e eles estão é dando o melhor que tem aos que não tem nada.

As storyboards são vendidas até por 1,500 dólares cada uma. O dinheiro vai para um fundo de restituição. É isto mesmo, cada preso tem que trabalhar para restituir o que roubou da sociedade. Não se paga a dívida social apenas sofrendo. Se paga pagando de verdade o estimado prejuízo que se causou. Se não paga não sai.

Minha amiga e anfitriã trabalhou na cadeia com restauração de destinos por muitos anos. Ela diz que 90% se recuperam e não reincidem. A comida é boa e as acomodações decentes. Me pergunto quais são os abismos que separam as nossas culturas. Uma ilha “remota” e insignificante e que consegue resolver seus problemas sociais de uma maneira bem mais efetiva do que nós.  A distancia entre nós é  muito maior do que a diferença entre o PIB dos dois países.

A hospitalidade do povo, os rostos sorridentes e o barulho dos carros japoneses no asfalto perfeito, o trânsito decente e respeitoso,  herança dos americanos, o mofo na pintura das casas, o mar cor de turquesa onipresente que surpreende em cada dobrar de esquina, Palau me conquista.
Concordo com Deus, nada é remoto, ninguém é insignificante.


Braulia Ribeiro colabora com o Genizah

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  1. Ótima abordagem acerca da visão de Deus sobre nós. Ouvi sobre isto ontem no culto. Temos que (tentar)enxergar o mundo como Deus enxerga, e não engessados por nossa tendência minimalista e egocêntrica

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  2. Texto lindo e magnífico! Ótima maneira de começar a semana: refletindo!

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  3. Olá. Assistindo pela internet uma palestra do Dr. Augusutus Nicodemus, parece-me que ele citou Braulia Ribeiro como uma das que estão denfendendo a Teologia Relacional no Brasil. Procede esta informação? Caso seja afirmativa, lamento muito que alguns pastores e mestre brasileiros estejam sendo enredados por essa nova heresia.

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  4. Bom texto e delícia de praia!

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