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Karl Barth e a teologia da prosperidade

Hélio

Hoje grande parte das igrejas evangélicas brasileiras é dominada por líderes que se dizem "autorizados" a falar em nome do Deus cristão, "profetizando", determinando ou declarando o que é de Deus ou não, chamando os que se lhe opõem de "filhos do Diabo", como se a divindade fosse propriedade privativa deles, na verdade um refém de seus delírios megalomaníacos. Aproveitando-se da aura de respeitabilidade que lhes confere o púlpito, fazem vão uso do nome de Deus para satisfazer seus apetites carnais. Sobretudo no que diz respeito à assim chamada "teologia da prosperidade", dizem ter todas as soluções mágicas para transformar vidas destruídas em exemplo de empreendedorismo, pessoas quebradas em milionárias, empresas falidas em multinacionais, tudo isso mediante "correntes", "unções financeiras" e outras práticas pagãs, não sobrando espaço algum para a pregação do evangelho puro e simples de Jesus Cristo.

Estava eu pensando se isto também não corresponde àqueles que Paulo condena em Romanos 1:18, os homens que "detêm a verdade em injustiça", e para minha agradável surpresa, esta interpretação também se depreende da análise que Karl Barth faz do mesmo versículo em sua obra "Carta aos Romanos", dizendo  basicamente que "confundimos a eternidade com a temporalidade". É interessante verificar que, muito tempo antes dessa nefasta "teologia" invadir as igrejas evangélicas, Karl Barth já dizia que "queremos Deus do nosso lado para abençoar e fazer prosperar o nosso negócio ainda que seja a ruína de nosso concorrente; gostamos de religião cômoda, tolerante para com o mundo e tolerável para ele, e classificamos o nosso comodismo como piedade religiosa". A seguir, um excerto do comentário de Karl Barth sobre Romanos 1:18:

O que quer dizer “fora de Cristo” e “sem Cristo”? “A ira de Deus revela-se contra toda a impiedade e insubordinação dos homens”. Estas são as marcas características de nossa relação com Deus aquém da ressurreição.

É desrespeitoso! [O nosso procedimento]. Pretendemos saber o que dizemos quando enunciamos a palavra “Deus”! Atribuímos-lhe a posição mais alta de nosso mundo e, em assim fazendo, colocamo-lo, fundamentalmente, na mesma linha em que estamos, nós e as coisas materiais; achamos que ele “precisa de alguém” e que podemos ordenar as nossas relações com ele como arranjamos qualquer outro relacionamento. Enfiamo-nos para junto dele sem maiores reservas [o Autor usa expressão equivalente a “insolentemente” ou “atrevidamente”, e penso que “sem maiores reservas” fica em melhor harmonia com o contexto] e, assim procedendo, o projetamos para nosso nível (o Autor diz “para nossa proximidade”). Permitimo-nos uma espécie de familiarização com ele e habituamo-nos a contar com ele [para todas as coisas] como se o relacionamento com Deus fosse coisa vulgar [e não especialíssima, da criatura com o Criador, relacionamento que só Jesus Cristo tornou possível, como nosso mediador, intercessor e advogado, em nome de quem nós nos aproximamos de Deus]. Levamos o nosso atrevimento ao ponto de nos arvorarmos em seus familiares, seus benfeitores, seus administradores [mordomos fiéis], seus corretores.
         Confundimos a eternidade com a temporalidade.
 Esta é a nossa falta de respeito no relacionamento com Deus.
Secretamente, nesse nosso modo de proceder, somos nós os Senhores. Para nós não se trata de Deus porém das nossas necessidades [de nossos desejos e conveniências] pelas quais queremos que Deus se oriente.

Além de tudo isso, a nossa petulância pede ainda que nos seja dado a conhecer um “super-mundo” e que tenhamos acesso a ele. Pedimos uma motivação profunda, um louvor ou uma recompensa, vinda do além.

Porfiamos por colocar Deus sobre o trono do mundo quando na realidade estamos entronizando a nós mesmos. “Crendo” nele, estamos apenas preocupados com a nossa justificação, honrando-nos a nós mesmos e tirando proveito próprio. Nossa religiosidade consiste na solene confirmação que fazemos a nós mesmos e ao mundo de que, piedosamente, nos poupamos da contradição. [Arvoramo-nos em servos fiéis; procuramos promover o reino de Deus sobre a terra, não por amor ao reino mas para ganharmos a recompensa de Deus. Ou então queremos Deus do nosso lado para abençoar e fazer prosperar o nosso negócio ainda que seja a ruína de nosso concorrente; gostamos de religião cômoda, tolerante para com o mundo e tolerável para ele, e classificamos o nosso comodismo como piedade religiosa]; Sob todos os sinais de piedade e enternecimento, na realidade, rebelamo-nos contra Deus, confundindo o nosso tempo finito com a eternidade de Deus. [Por querermos ser iguais a Deus embalamo-nos em nossas pretensões e ilusões, esquecendo que nossa vida é qual a erva que foi num instante e já não é; todavia, para o verdadeiro Deus, não há fim como não houve princípio].

Esta é a nossa rebeldia. É o nosso relacionamento com Deus, estabelecido sem Cristo e fora de Cristo; aquém da ressurreição. Antes de sermos chamados à ordem; e o relacionamento no qual, verdadeiramente, não reconhecemos a Deus como Deus, e o que chamamos Deus é, na realidade, o próprio homem. Servimos a este NÃO-DEUS para vivermos segundo nossos desejos [abafando a consciência com o deus-ídolo, criado à nossa própria imagem].

Os quais “detêm a verdade, presa nos grilhões de sua insubordinação”. Esta é a segunda característica [daqueles para os quais paira a ira de Deus; a primeira (assim chamada porque o Autor tratou primeiramente ela) é a troca entre a temporalidade e a eternidade, ou vice-versa]. Todavia essa segunda característica é cronologicamente mais antiga pois surgiu com o pecador original [quando o homem quis ser igual a Deus]. O ser humano perde-se primeiro em si mesmo, presa de sua própria conduta, [retendo a verdade] e depois pela criação (e adoração) do NÃO-DEUS.

 Ouvimos, primeiro, a profecia: “Sereis como Deus!” Depois perdemos o senso do eterno. Primeiramente sobre-elevamos o homem e, em seguida, menosprezamos a distância que nos separa de Deus.

O ponto nevrálgico do nosso relacionamento com Deus, fora de Cristo e sem Cristo, é a revolta do escravo. [Revoltamo-nos contra Deus e, nessa rebeldia] atribuímos a nós o que só pode ser atribuído a Deus e, consequentemente, nada temos acima de nós para atribuirmos a ele, pois somos para nós mesmos o que Deus deveria ser. Quando [em nosso íntimo] secretamente, nos fazemos iguais a Deus, nós nos isolamos dele.

O pequeno Deus que criamos, dispensa, necessariamente, o grande Deus. [Por isso] os homens aprisionam, encapsulam, a verdade, que é a santidade de Deus que procuram vestir em si mesmos e assim despojam a seriedade e o alcance dessa santidade, tornando-a vulgar, inócua, inútil; transformam-na em inverdade. Este desfecho vem à luz [se revela] pela impiedade dos homens o que [em círculo vicioso] gera novas e constantes rebeldias.
 Quando o homem se torna o seu próprio Deus, precisa criar o ídolo [para representar a sua criação] pois, elevando o ídolo em honra, honrar-se-á a si mesmo como o criador da [tão honrada] imagem [e portanto digno de honra ainda mais alta].

Esta é a resistência que nos torna impossível olhar a planície da nova dimensão e nela ver a limitação de nosso mundo e a nossa salvação.

(Karl Barth, “Carta aos Romanos”, Ed. Novo Século, 2003, pp. 52-53)

 Que vergonha!


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