Braulia Ribeiro é da turma do Genizah!

Braulia Inês Ribeiro, casada, três filhos, é mestre em etnolingüística. Ex presidente da JOCUM. Missionária na Amazônia há mais de 20 anos, atualmente em doutorado no Havaí. Aqui

Considerações antipáticas

Não gosto de voar de avião. Cada decolagem e aterrisagem é para mim um exercício de fé e de amor a Deus. Parece ridículo mas amamos a Deus nas pequenas coisas. Quando o barulho muda por alguma razão, clamo, choro. Olho as caras dos que entram comigo no avião como se pudesse adivinhar se estão destinados a morrer, como os passageiros do vôo 1907 da GOL. Decorei os detalhes excruciantes à respeito do acidente, repetidos a todo os momentos pelos jornais. Gostaria de não sabê-los.

Carrego sempre duas malas de rodinhas que faço minutos antes de sair. O quarto onde quer que eu esteja fica sempre desarrumado, e é sempre um prazer deixá-lo e voltar à minha casa que mantenho limpa e arrumada apesar de minhas três crianças. Não tenho roupas bonitas e não penteio o cabelo a não ser quando lavo. Quem tem cabelo crespo sabe porquê. Gostaria de me arrumar melhor. Às vezes me sinto bonita, às vezes apenas reconheço conformadamente que meu tempo passou. Mas ainda sou mulher que gosta de se sentir mulher. Queria fazer uma escova de vez em quando se a vida deixasse. O visual hippie não é proposital ou elaborado, é mero resultado de falta de roupas adequadas e uma praticidade extrema.

Amo minha família, apesar de nem sempre convivermos em harmonia. Meu filho mais velho (18 anos) escolheu ser missionário, mas segundo ele foi apesar de nós. Meus adolescentes tem muita preguiça com a vida e são narcisistas como todos adolescentes. Meu marido sofreu de depressão por alguns anos apesar de ser um profissional da fé como eu. O mal do século atinge a todos. Eu tentei não me culpar pela depressão dele, mas é difícil. Muitos cônjuges que conheço se sentem como eu, a causa da depressão do marido ou da esposa. É uma das culpas que carrego sempre comigo, um pouco para me sentir parte dos sofrimentos dele. Ele é um líder brilhante, mas não gosta de falar em público, apesar de ser, de acordo com meu suspeito julgamento de esposa, um excelente preletor.

Quando saio a conferenciar, as pessoas que me convidam me recebem numa espécie de expectativa debochada. Juram me amar e dizem que esperam coisas boas de minhas palestras, mas acabam deixando escapar sem querer que minha presença ali foi mais um ato de subversão religiosa, do que de fé. Sorrio, tem que se sorrir para tudo sempre, mas isto não me lisongeia. A responsabilidade de ser o azarão da partida ainda é maior do que a de ser o preletor que todos respeitam. Não me sinto um azarão, para mim mesma tudo o que passo pra frente não passa uma compilação honesta de informações, experiências, e algumas raras revelações novas, se é que alguma coisa neste mundo pode ser realmente nova.

Como um criador de camelos, sei tudo sobre os camelos, mas não sou um camelo. Ou seja vivendo como executiva de missões não me sinto a gloriosa e abnegada missionária. Algumas pessoas me perguntam como é meu dia a dia na tribo. Sinto muito mas não trabalho mais na tribo há anos. Sorriem amarelo, decepcionadas. Compraram gato por lebre? Meu honorário diminui. Não sei como se iludiram, sendo que sabem de início que fui por quatro anos presidente em atividade de uma das maiores agências brasileiras, escritora, professora, escritora, conferencista, e por 20 anos pioneirei com meu marido um centro de treinamento e envio missionário. Morei sim com vários povos amazônicos indígenas por 10 anos, descobri os Suruwahá, trabalhando com eles alguns anos. Agora minha família mora no Pacífico e se Deus quiser e continuar nos orientando assim vamos treinar e enviar missionários para os povos ainda sem Bíblia da Polinésia e Melanésia.

Me recuso a ficar falando das coisas estranhas que já comi, e do exotismo dos povos que já conheci para mero voyerismo missionário da platéia. Se falar algo que preste terá carne bíblica e terá algum link com a realidade que nos cerca, e certamente trará a consciência de demandas e responsabilidade novas para a vida pessoal da platéia. Me recuso a usar impostação de voz e uso retórica religiosa, apenas quando estou cansada. Se você me ouvir falando glória a Deus ou usando clichês evangélicos por favor me leve pra casa que estou exausta.

Destesto rótulos políticos. Não sou de direita nem de esquerda, meus comentários geralmente não ajudam a causa de nenhum partido, mas eu espero que façam a todos pensar um pouco além dos limites definidos por sua ideologia.

Os jovens sempre costumam gostar mais de mim do que os adultos. Nunca serei unanimidade ou consenso. Pessoas acharão isto ou aquilo de ruim das minhas falas ou da minha postura, e outras isto ou aquilo de bom. Todos terão razão. Às vezes choro quando oro, e nestes momentos sinto que orei de verdade. Mas na maioria das vezes oro como qulquer um, lutando para sentir fé, sem que aconteçam fogos de artifício ou milagres extraordinários. Não sou melhor do que ninguém, e na maioria do tempo me sinto pior. Deveria realizar mais pelo que sei, saber mais, amar mais. Não será um prazer pra mim estar com vocês nem falar na sua igreja. Será um sacrifício. Prazer pra mim é ficar em casa, cozinhar jantar pros meus filhos. Mas se você me convidar eu provavelmente irei, como um ato de fé. Amém.