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A carta de Barth a Schaeffer e o embate entre a ortodoxia e a Missão Integral


O artigo a seguir é uma das peças mais ricas e ponderadas que eu li nestes últimos meses na blogosfera cristã. Tão imparcial, quanto é possível ser, a apresentação da  recém descoberta  carta de Barth a Schaeffer é posta no seu contexto histórico correto e, ouso afirmar, espiritual, oferecendo tanto a "Chicos" quanto a "Franciscos" as admoestações necessárias. Aos que superarem todo o texto com a mente aberta e a disposição do Espírito a recompensa virá. À Allen Porto e Marlon Marques segue o meu mais fraterno agradecimento.

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O curioso caso da carta de Barth a Schaeffer




Por Allen Porto
Em A Bíblia o Jornal e a Caneta




Uma das últimas “novidades” do mundo virtual brasileiro foi a descoberta de uma carta escrita pelo teólogo suíço Karl Barth ao pastor norte-americano Francis Schaeffer.

O teor da carta, reproduzido abaixo, revela a resposta de Barth a um paper enviado pelo americano, bem como demonstra a inquietação do suíço diante da postura de Schaeffer e outros pastores. Leia a carta, conforme a tradução de Marlon Marques:


Bergli, Oberrieden, 3 de setembro de 1950

Reverendo Francis Schaeffer
Châlet des Frênes
Champéry

Estimado sr. Schaeffer!

Reconheço haver recebido sua carta de 28 de agosto e seu texto “O Novo Modernismo”. No mesmo dia seu amigo J. Oliver Buswell escreveu-me de Nova Iorque junto com uma crítica, “A Teologia de Karl Barth”. Vejo que as coisas que você pensa sobre mim são, aproximadamente, do mesmo tipo daqueles que encontrei no livro de [Cornelius] Van Til sobre esse mesmo tema¹. E vejo que você e seus amigos escolheram cultivar um tipo de teologia, a qual consiste em um tipo de criminologia; você está vivendo do repúdio e da discriminação de todo tipo e de toda criatura semelhante, cujas concepções não são inteiramente (ou numericamente) idênticas com suas perspectivas e declarações. Você está “caminhando sobre a rocha sólida da verdade [assim como você diz de si mesmo]. Nós, pobres pecadores, não estamos fazendo como você. Eu não estou. Meu caso foi sinalizado como sem esperança alguma. O júri falou, o veredito foi proclamado, o acusado foi pendurado pelo pescoço até que morreu nesta mesma manhã.

Bom, bom… Digamos a sua maneira: é assunto seu, e ao fazer as coisas, ao falar, e ao escrever como o faz, você deveria arcar com suas próprias responsabilidades. Você pode repudiar meu trabalho e minha obra “como um todo”. Pode me chamar de nomes como mentiroso, vago, anti-histórico, desinteressado com a verdade, entre outros. Pode continuar fazendo seu trabalho de “detetive” nos Estados Unidos, na Holanda, na Finlândia e em todo lugar. Pode me desacreditar como o mais perigoso herege. Por que não? Talvez o Senhor disse-lhe que você fizesse isso.

Porém, por que você, e para qual propósito, deseja uma conversa mais profunda comigo? O herege foi queimado e enterrado para o bem de todos. Por que você quer perder mais tempo (e o dele²) falando com ele? Estimado sr. Schaeffer, você disse que percebe que vocês estão mais perto dos antigos modernistas e dos católicos romanos do que de mim e de homens como eu. Porém, por que você não prova a eficácia de sua “apologética” em alguns exercícios com estes “antigos modernistas” e com católicos romanos, que você encontrará aos montes aqui na Suíça? Por que segue perturbando este homem em Basileia, a quem derrotaram tão esplêndida e completamente?³

Regozije-se, senhor Schaeffer (e chamem-se, vocês mesmos, os “fundamentalistas” de todo o mundo). Regozije-se e siga crendo em sua “lógica” (como no quarto artigo de seu credo) e em vocês mesmos como os únicos verdadeiros “crentes bíblicos”. Grite tanto quanto puder! Porém ore, e permita-me deixá-lo em paz. As “conversas” são possíveis com pessoas de “mente aberta”. Seu texto e as críticas de seu amigo Buswell revelam o feito de sua decisão de fechar as portas. Não sei como lidar com um homem que vem me ver e falar comigo na qualidade de detetive/inspetor ou com o comportamento de um missionário que vai converter um pagão. Não, obrigado!

Seu, sinceramente.

Desculpe meu mau inglês. Não estou acostumado a escrever em seu idioma.

Estou enviando uma cópia desta carta ao reverendo Buswell.

Estimado sr. Buswell!

Li suas criticas junto com os escritos do sr. Schaeffer. Todo o conteúdo de minha carta se refere a você também.

Seu,

Karl Barth


Notas:

¹ Livro de Van Til chamado Cristianismo e Barthianismo
² Barth fala de si mesmo na terceira pessoa
³ Novamente Barth fala de si na terceira pessoa


Conteúdo explosivo, não? A descoberta de tal carta no contexto brasileiro veio no momento em que as transições políticas denunciavam a possível falência de alguns ideais dos teólogos da missão integral. Ariovaldo Ramos, por exemplo, foi enfático em descrever o impeachment como algo diabólico.



A crítica contundente do pastor mineiro Guilherme de Carvalho a esses teólogos, segundo o qual colonizaram o discurso religioso com a política, promoveu alguma inquietação no meio da TMI.




A estratégia comum adotada foi a desqualificação das referências de Guilherme de Carvalho. Caio César Marçal, articulador da Rede Fale, atacou a figura de Herman Dooyeweerd como alguém sem expressão filosófica.



O Dr. Jorge Barro, diretor de desenvolvimento institucional da Faculdade Teológica Sul Americana, utilizou a tradução da carta para criticar a postura do “L’Abri”, centro fundado por Francis Schaeffer, cuja filial brasileira está sob a coordenação de Carvalho.



Além desse uso, que diz respeito mais especificamente ao pastor de Belo Horizonte, tenho visto adeptos da TMI e admiradores da teologia de Karl Barth, ou simplesmente críticos da ortodoxia teológica, usarem a carta para os mais variados fins, todos decorrendo da ideia de exibir a intolerância dos fundamentalistas [1] e ortodoxos.

Mas o que tal carta significou e significa hoje? Compreender o seu contexto pode ser de grande valor para um uso adequado do material.


A história por trás da carta


Francis Schaeffer foi aluno de Cornelius Van Til em seu período de graduação teológica. Possivelmente recebeu desse mestre algumas das categorias fundamentais pelas quais faria sua crítica ao sistema teológico proposto por homens como Karl Barth e Paul Tillich.

Schaeffer fazia parte de um grupo fundamentalista – no sentido “não emocional” do termo – que rompeu com a recém-formada Presbyterian Church of America (que depois viria a se chamar Orthodox Presbyterian Church – OPC) e o também recente Seminário Teológico Westminster (WTS). Acompanhando Carl McIntire, Schaeffer esteve no primeiro grupo da Bible Presbyterian Church, denominação na qual foi ordenado. Havia, entre tais pessoas, uma ênfase separatista bastante intensa, pelas mais variadas razões: uma das questões que levou ao rompimento com o WTS tinha a ver com a possibilidade de um cristão beber, fumar e dançar.

Francis Schaeffer ministrou nesse contexto por dez anos, antes de se mudar para a Suíça, a fim de ministrar no ambiente da Europa pós-guerra. Mudou-se para solo europeu em 1948, e até 1955 ainda esteve ligado, de uma maneira ou outra, aos fundamentalistas de sua denominação. Somente com o início de L’Abri, em 1955, Schaeffer rompeu os vínculos com o grupo mais separatista, caminhando para outra atitude em seu ministério.

Karl_Barth_1Foi ainda em sua fase fundamentalista que a conversa com Karl Barth teve lugar. Em 1950, foi realizado um congresso do International Council of Christian Churches (I.C.C.C.) na Suíça. Schaeffer era o responsável pela organização e secretariado do evento. O congresso foi realizado entre os dias 16 e 23 de agosto daquele ano, e no dia 19, Schaeffer e outros quatro teólogos fizeram uma visita a Karl Barth. Embora J. Oliver Buswell e Francis Schaeffer tenham lembrado da gentileza de Barth na ocasião [2] , o teólogo suíço revelou, em sua carta, como se sentiu.

Não se deve tomar uma declaração emocional como a representação definitiva dos eventos. Emoções fora de ordem podem comprometer a compreensão da realidade. Porém, mesmo sendo possível sentir a amargura de Barth na resposta a Schaeffer, é perfeitamente plausível que sua descrição do evento seja adequada: o tom combativo do grupo fundamentalista ao qual Schaeffer pertencia provavelmente transformou a conversa com o teólogo em uma espécie de investigação criminal.

Para Schaeffer, porém, o diálogo era possível. Foi assim que, após a conversa, enviou o seu paper sobre o novo modernismo ao suíço, a fim de seguir discutindo alguns pontos. A resposta, porém, foi um duro rompimento na comunicação.

Deve-se destacar o conteúdo da conversa. Barth adotou postura defensiva desde o início. Segundo a memória de Buswell, um dos momentos se deu da seguinte maneira:


Barth: – Eu li o paper da I.C.C.C., mas que tipo de igrejas cristãs?
Buswell: – Nós somos chamados fundamentalistas.
Barth: – Fundamentalistas! Vocês gostariam de me devorar!
Schaeffer: – Não; isso destruiria o nosso propósito; nós gostaríamos de conversar com você. [3]


Mesmo no contexto do fundamentalismo, Schaeffer demonstrava sinais de abertura ao diálogo.

Em outro momento da conversa, perguntaram a Barth algo que haviam lido em seus escritos. “Deus criou o mundo no primeiro século d.C., ou entendemos errado?” Barth respondeu: “Certamente. Deus criou o mundo no primeiro século d.C.”

Tal rompimento com o espaço e o tempo encarnava o que Schaeffer definiu como divisão entre o patamar de cima e o de baixo. Barth parece fazer uma completa separação entre a história “real”, verificada pela ciência, e a história da salvação, realizada em um plano superior, não racional e nem verificável. O que a afirmação de que Deus criou o mundo no primeiro século depois de Cristo falava sobre a doutrina da criação? E sobre a compreensão do Gênesis? E sobre a relação entre fé e realidade?

Schaeffer enviou o paper e recebeu tal carta de resposta. Aquilo o impactou profundamente. Conforme William Edgar [4], tal resposta foi um dos elementos que causaram a crise de fé experimentada por Schaeffer logo em 1951. Outro elemento foi a percepção de que a sua maneira de lidar com as pessoas não expressava beleza e graça.Francis-Schaeffer_IN2
A partir dessa crise o ministério de Schaeffer sofreu uma guinada, cristalizada no início de L’Abri, em 1955. Com uma direção tão diferente, Schaeffer rompeu com a missão e a denominação que o enviara, e passou a lidar com as pessoas de maneira mais graciosa e acolhedora.

O detalhe que precisa ser destacado é que Schaeffer nunca mudou a sua opinião sobre a teologia de Barth, embora tenha mudado a sua atitude diante das pessoas de quem discordava. As críticas permaneceram, e continuam fazendo sentido em questionar uma percepção dividida da realidade, que não provê sustentação para a vida humana — se tudo acontece no patamar de cima, o que nos resta no patamar de baixo, da vida comum?


A carta diz o que se quer que ela diga?

O que se percebe, então? Os defensores da TMI e de uma abertura teológica exibem a carta como a prova final da intolerância ortodoxa, e como a mancha fundamental no caráter de Schaeffer. A carta diz isso mesmo?

É verdade que Schaeffer deve ter agido de maneira errada com Karl Barth quanto ao trato pessoal. Deve ter sido inquisidor e agressivo, e provavelmente por isso a resposta do suíço o afetou tanto. Mas seria essa a característica fundamental de Schaeffer e de L’Abri?

Como já se viu, o ministério de Schaeffer foi fundado após a mudança radical de atitude assumida pelo americano. L’Abri é o contrário do separatismo adotado anteriormente — é o ambiente no qual as pessoas mais diferentes podem sentar e conversas, certas de que, ao fazerem perguntas honestas, receberão respostas honestas.

A resposta de Barth também nada fala sobre o conteúdo de sua crença. Dizer que duas pessoas só podem conversar se tiverem mente aberta nada diz acerca de ser verdade o que elas falam. A atitude que desconsidera balizas bíblicas preferirá a característica de “mente aberta” à de “fundamentado na Escritura”.

Por fim, e de maneira bastante paradoxal, os que usam a carta para desqualificar Schaeffer ou os ortodoxos adotam a mesma postura intolerante que condenam; desqualificam sem conversar; atuam como mentes fechadas e julgam os demais por sua régua teológica (sua versão da ortodoxia).


O que essa carta prova?

 Provavelmente esses itens:

1)  Realmente existem grupos despreparados para o diálogo;

2)  Schaeffer já fez parte desse grupo;

3) Schaeffer caminhou para uma nova atitude, que expressa beleza e graça na comunicação;

4) Beleza e graça não devem ser confundidas com falsa humildade ou convicções fracas – especialmente na era do politicamente correto;

5) As pessoas de “mente aberta” podem ser mais intolerantes do que você imagina.




Notas
[1] Deve-se levar em consideração que a palavra “fundamentalista” hoje expressa mais uma disposição emocional do que a compreensão de um fenômeno. Em bom português, “fundamentalista”, mais do que descrever alguém, virou xingamento.
[2] Cf. DURIEZ, Colin. Francis Schaeffer: an authentic life. Wheaton, IL: Crossway books, p.96.
[3] Duriez, Francis Schaeffer, p.96–7.
[4] EDGAR, William. Schaeffer on the christian life.Wheaton, IL: Crossway books, p.100. E-book.













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