Deus, Arte e Liberdade de Expressão
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Hermes Fernandes
Um dos meios mais significantes de expressão é a arte. E quando me refiro à arte, pretendo abarcar todo o leque de manifestações artísticas, desde as artes cênicas, passando pelas artes plásticas, pela música, literatura, etc.
Ao dotar o ser humano de sensibilidade artística, o Criador estava imprimindo nele um dos Seus traços mais marcantes. Deus é o Supremo Artista. Toda a Sua criação é uma grande obra de arte.
Em Efésios 2:10, o apóstolo Paulo diz que “somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas”. A palavra grega traduzida como “feitura” é poiema, que também poderia ser traduzida por “poema”. Que interessante: somos o poema de Deus. Somos uma expressão artística de Deus.
João Calvino, o grande reformador protestante do século XVI, defendia que a arte é um dom de Deus, e que deveria ser usada para glorificá-Lo. E mesmo quando a arte se rebaixa para tornar-se o instrumento de mero entretenimento para o povo, Calvino afirma que este tipo de prazer não lhe deveria ser negado. Quanto mais o homem se aprofunda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos segredos da divina sabedoria”.
Sobre isso, escreveu Bavinck (1854-1921):
“A arte também é um dom de Deus. Como o Senhor não é apenas verdade e santidade, mas também glória, e expande a beleza de Seu nome sobre todas as Suas obras, então é Ele, também, que, pelo Seu Espírito, equipa os artistas com sabedoria e entendimento e conhecimento em todo tipo de trabalhos manuais (Ex 31.3; 35.31). A arte é, portanto, em primeiro lugar, uma evidência da habilidade humana para criar. Essa habilidade é de caráter espiritual, e dá expressão aos seus profundos anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela harmonia. Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo ideal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra são substituídas por uma gratificante harmonia. Desta forma a beleza revela o que neste mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria, mas está descoberto aos olhos do artista. E por pintar diante de nós um quadro de uma outra e mais elevada realidade, a arte é um conforto para nossa vida, e levanta nossa alma da consternação, e enche nosso coração de esperança e alegria.”
E quando falo de arte, não endosso a pretensa distinção entre arte cristã e arte pagã. Concordo com Hermisten Maia Pereira da Costa, que em seu belo texto intitulado “O Espírito Santo na Vida Intelectual e Artística” afirma: “A dicotomia entre “arte cristã” e a “arte pagã” tem contribuído para que os cristãos muitas vezes se distanciem das expressões artísticas, rotulando-as precipitadamente de pagã, sem o devido critério. Por outro lado, e isto é o mais grave, com o nome de arte cristã tem-se pretendido criar um suposto isolacionismo cultural que, na realidade tem sido, em geral, de baixíssima qualidade e, o pior: supostamente para a glória de Deus. Muitas vezes em nome de uma “arte cristã” estamos patrocinando uma “reserva de mercado”, onde a sensatez e o senso crítico não têm vez, visto que neste caso, o que conta é o sentimento, como que este, por si só estivesse acima de qualquer juízo de valor.”
Michael S. Horton nos adverte com precisão: “Se vamos escrever literatura ‘cristã’ e criar obras de arte e música distintamente ‘cristãs’, deverá ser feito de modo tão plenamente persuasivo intelectualmente e artisticamente que os que não são cristãos ficarão impressionados por sua integridade – mesmo que eles discordem”.
É o próprio Deus quem capacita pessoas a se expressarem através das artes. Lemos em Êxodo, que Deus escolheu dois homens, Bezalel e Aoliabe, enchendo-os de “habilidade, inteligência e conhecimento, em todo artifício, para inventar obras artísticas, para trabalhar em ouro, em prata e em bronze, em lavramento de pedras de engaste, em entalhadura de maneira, para trabalhar em toda obra fina (...) Encheu-os de habilidade, para fazerem toda obra de mestre, até a mais engenhosa, e a do bordador, em estofo azul, em púrpura, em carmesim e em linho fino, e a do tecelão; toda sorte de obra, e a elaborar desenhos”. Uau! Quanta inspiração Deus deve ter dado àqueles homens!
Porém, de nada adiantaria dar-lhes inspiração, se não lhes fosse dada a liberdade necessária para expressá-la.
Durante a Ditadura Militar, muitos artistas brasileiros foram exilados, porque suas obras eram consideradas subversivas. Um desses artistas foi Caetano Veloso, que amargou um período de exílio na Inglaterra. Alguns dos grandes compositores brasileiros tiveram que expressar sua indignação através de músicas com sentido subliminar. Chico Buarque, por exemplo, tinha suas músicas sistematicamente observadas. Uma de suas músicas com duplo sentido foi “Apesar de Você”:
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão.
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar.
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro.
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de “desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar.
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria.
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença.
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal,
La, laiá, la laiá, la laiá…….
Naquele período tenebroso da nossa história, todas as publicações, livros, programas de TV e rádio, eram obrigados a passar pelo crivo de um grupo de censores. Os critérios eram subjetivos e iam desde os aspectos ideológicos e políticos, até os relacionados a costume. Os censores indicavam os trechos, e muitos casos, a obra toda que não poderia ser divulgada. Assim, algumas obras ficavam desfiguradas e sem sentido.
Muitos filmes produzidos naquela época nunca chegaram à telas. Políticos e pensadores foram encerrados atrás das grades. Artistas foram expulsos do País. Sem contar aqueles que simplesmente desapareceram, sem deixar vestígios.
Grande parte da nata intelectual e artística do Brasil ficou impedida de se expressar. Todos perdemos com isso.
A igreja cristã, juntamente com seus líderes, deve estimular a arte e a sua livre expressão.
Se houvesse algum tipo de censura religiosa nos tempos bíblicos, provavelmente muitos dos salmos teriam sido editados ou simplesmente descartados. E certamente não teríamos o livro do "Cântico dos cânticos", cujo conteúdo é extremamente erótico, mas nem por isso, deixa de ser espiritual.
Nenhum líder religioso tem o direito de promover qualquer tipo de censura. Em vez disso, deve oferecer aos fiéis instrumentos, para que saibam apreciar e ao mesmo tempo discernir a mensagem que o artista está tentando passar. E aqui vale a admoestação de Paulo, o apóstolo: Apreciar tudo, e reter o que for bom.
Olá hermes,sou novo no pedaço,esse negócio de blog é muito interessante,meus parabéns pelos post.Um dos temas que ainda está esquecido é esse da arte\estética.A liderança evangélica em geral esqueceu desse tema,só pensa no couro das ovelhas,proclama uma pregação de arrecadação,ao invés da cruz;tirando os olhos nisso,digo a você,estou contente que existe ainda um remanescente fiel de lideres que se preocupam no evangelho simples e contundente,e que discorre sobre temas inspirativos.Fui..
ResponderExcluirEsse texto "mexeu" comigo! Sabe aquele desequilíbrio que acontece quando, involuntariamente, deparamo-nos com o oposto de tudo o que já nos foi ensinado?
ResponderExcluirNa verdade, não há como discordar do autor.
Entretanto, penso que praticar o que a conclusão do texto sugere, ainda, seja uma utopia para a maioria dos que se dizem evangélicos.
Todos os pastores que tive (acho que já foram mais de vinte), sem exceção, sempre censuraram qualquer produção artística cuja origem não fosse envangélica.
Cresci em Igreja Evangélica e jamais presenciei um líder sequer apoiar manifestações culturais ou artísticas fora da igreja.
Sobre o que acabo de declarar, alguns fatores devem ser levados em consideração:
1)Sempre residi em cidade do interior com número de habitantes inferior a 20 mil.
2)Durante muito tempo fui membro de Igreja Evangélica Pentecostal à moda antiga.
Dentre todas as manifestações artísticas, a mais combatida sempre foi a música.
Isso ficou tão arraigado em mim, que na época em que cursei Letras, tive à minha disposição uma excelente orientadora para o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso)em "Análise do discurso" que sugeriu a análise de letras de músicas (as composições de Chico Buarque e Caetano Veloso oferecem muitos elementos para esse tipo de estudo).
Fiquei apavorada com a possibilidade de ser pega comprando CD "mundano" ou mesmo ouvindo músicas não cristãs. Sendo assim, acabei analisando "Grande Sertão Veredas", de Guimarães Rosa. Quem conhece essa obra pode fazer ideia do trabalho que tive.
Ufa!!! Aos poucos, estou me recuperando do prejuízo cultural.
Resumindo, a maioria dos líderes "cristãos" tem como principal objetivo aprisionar as ovelhas, tornando-as reféns de suas ideias ou caprichos.
Quem ousa sair do cativeiro é imediatamente considerado rebelde. É aí que mora o perigo!
Hermes,
ResponderExcluirIsto é perfeito:
Michael S. Horton nos adverte com precisão: “Se vamos escrever literatura ‘cristã’ e criar obras de arte e música distintamente ‘cristãs’, deverá ser feito de modo tão plenamente persuasivo intelectualmente e artisticamente que os que não são cristãos ficarão impressionados por sua integridade – mesmo que eles discordem”.
A arte engajada só tem sentido se extrapola o gueto e cumpre a missão.
Don contrário, que seja arte pela arte, como a Graça nos permite.
O cristão tem de ser sal! E o olhar o mundo com olhos de Deus e não ficar olhando para o proprio umbigo...
Texto abençoado. Concordo plenamente que "nenhum líder religioso tem o direito de promover qualquer tipo de censura".
ResponderExcluirRecentemente tive um artigo de meu blog "censurado" por meu pastor, que pediu que eu retirasse. Obedeci, mas que doeu, doeu...
Vamos e venhamos: existem alhos e bugalhos! Temos que exercer o nosso discernimento em tudo, inclusive nas artes! Senão vira bagunça, com grupos de pagode, axé, funk, punk e o escambau a quatro, transformando o tablado do púlpito numa autêntica "zorra total"! Há igrejas por aí que se parecem mais com boates, cheias de "luzinhas" coloridas, refletores, canhões de luzes multi-cores e uma zoeira infernal! Isso sem contar com danças sensuais, requebrados, saracoteios, um verdadeiro "samba do crioulo doido"! Se tivermos uma espécie de "Departamento de Artes Cênicas", com lideranças capacitadas e comprometidas com a "decência" e "ordem" explicitadas pelo apóstolo Paulo, com o devido controle do pastor e dos diáconos, então será possível a utilização da arte voltada para o louvor e para o evangelismo. Peças teatrais e cinematográficas podem ser montadas, talentos podem ser descobertos nas artes dramáticas e na autoria e composição, filmes podem ser produzidos, etc. Mas tudo sob cuidadosa supervisão, nada na base da "casa da mãe Joana" e da "panela que todo mundo mexe"! Quanto a gostos pessoais, cada qual tem o seu, isso é muito particular. O homem e a mulher de Deus tem que ter maturidade para escolher o que lhe serve e jogar fora o que lhe prejudica. Leio José de Alencar, mas tenho que tomar um certo cuidado com o linguajar do Jorge Amado, apesar de sua excelente obra. Aprecio a poesia de Gonçalves Dias e Olavo Bilac, mas não dá pra suportar as baixarias do J.G. de Araújo Jorge. Posso ouvir o Chico, o Milton e o Ivan Lins, mas macacos me mordam se vou engolir o "maluco beleza", mas nem a pau!!! E nem "rapeiros" ou tribalistas. Prefiro Tião Carreiro e Pardinho, Pedro Bento e Zé da Estrada, Cascatinha e Inhana, as Irmãs Galvão, Tonico e Tinoco e o Sérgio Reis. Tá falado!
ResponderExcluirInfelizmente quem espera alguma coisa do segmento ‘evangélico’ brasileiro algo sobre este tema de desenvolver arte e cultura ampla no meio é um utopista que olha para um horizonte inatingível, primeiro porque a maior parte da arte e cultura vem de fora principalmente dos americanos estadunidenses em que as pessoas aqui neste tupiniquim colonizado valoriza endeusa e diante disso abre-se a porteira para o lixo sem algum tipo de filtro selecionador crítico (músicas, livros e artes gráficas – artes plásticas nem pensar é algo inexistente e que nem alcançam) que vem de fora, os nativos se acomodaram com os rechonchudos em cima desses enlatados e muitos que poderiam fazer tais expressões se acomodaram ou são preguiçosos (ou são sabotados) de criar coisas novas originais e próprias de nossas raízes. E segundo porque a coisa feita no país como arte e cultura sofre preconceito estúpido desta religião de toda a sorte, salvo um ou outro grupo que valoriza mais é incipiente. E em terceiro os grupos empresariais que se apoderaram nos últimos anos do comércio desta fatia de mercado, principalmente na música, não interessa fazer algo que seja genuinamente artístico (e original) e com conteúdo, por vários motivos que passa ao lucro rápido ao controle e condicionamento das mentes, mais uma vez, salve um ou outro e mesmo assim bem incipiente fora deste esquema... quem sabe não poderia surgir um underground dos desigrejados? Difícil, mas é como se olhasse para aquele horizonte inatingível! Eu gostaria de dizer que para o homem é impossível, mas para Deus nada o é, de um modo ou de outro.
ResponderExcluirEm alta consideração a este post , vou colocar algo tão nosso e original representado por artistas da MPB, quatro links (vídeos) aqui em quatro tempos da Música "Juízo Final" (samba de Nelson Cavaquinho), já colocada aqui neste blog em outra ocasião em um outro vídeo que eu também dou um repeteco ao final deste quadra. Estes quatro artistas conhecidos com seus talentos fantásticos dão um brilho todo especial, emocionante e constrangedor que toca a alma... quem quiser entenda. Este exemplo "herege" e altamente contraditório para muitos "crentes" é o que me encanta, de dizer uma profecia verdadeira, de quem nunca entrou em quatro paredes de "igreja evangélica" dizer esta poesia! Deus sopra aonde quiser, e há vários exemplos que eu tenho aqui comigo, não dá para desconsiderar. Ah, não posso me esquecer dessa! E em homenagem a “patrulha crente religiosa de plantão” e ao autor deste post que gosta de “heavy metal”, deixo esta em estilo folk de Zeca Baleiro, “Heavy Metal do Senhor”... re rere rere re
ResponderExcluirZeca Baleiro
http://www.youtube.com/watch?v=sg9i0vqpJuI
Naná Vasconcelos e Virgínia Rodrigues
http://www.youtube.com/watch?v=Q685DfQJ0XQ
Clara Nunes
Juízo final http://www.youtube.com/watch?v=WiH6oAYtMNI
Nelson Cavaquinho (compositor)
http://www.youtube.com/watch?v=pIjdkxn9MgA
Heavy Metal do Senhor (Zeca Baleiro)
http://www.youtube.com/watch?v=MLuXLmQILKE