O Papa veio! E daí?
https://genizah-virtual.blogspot.com/2013/08/o-papa-veio-e-dai.html
Rev. Marcelo Lemos
Muita gente não sabe, mas o fato de existir hoje uma tradição cristã chamada de “evangélica” tem a ver com um Papa. E ainda mais a ver com um certo monge agostiniano, de nome Martinho Lutero. A Reforma que teve lugar no Ocidente começou, de modo oficial, em 1517, quando esse monge desafiou a Igreja de Roma a respeito das indulgências. Tendo Lutero literalmente fixado suas 95 Teses na porta de Wittenberg, ou se esse detalhe é apenas uma lenda posterior, o fato é que seu protesto mudou o curso da História no Ocidente.
Antes do Século XVI houve outros movimentos reformistas, e muitos heróis da fé. Tenho preferência por dois deles, mas creio que muitos 'evangélicos' irão torcer o nariz com minhas escolhas. Tenho em mente dois servos de Cristo que jamais romperam com a Igreja de Roma, a saber, São Francisco de Assis e São Benedito de Núrcia (São Bento). Esses homens reformaram tanto a espiritualidade da Igreja em seus dias como a sociedade a sua volta. Como anglicano, sinto-me honrado em fazer parte da Comunidade de Jesus, onde cristãos de diferentes confissões podem viver a espiritualidade beneditina ou franciscana.
Mas os dias se tornariam mais duros, e alguns reformadores seguintes acabariam nas mãos da Inquisição. Não tenho qualquer preconceito exagerado contra a Inquisição, e gostaria de lembrar que os protestantes também tiveram as suas. Mas homens como John Wycliffe (1320-1384), John Huss (1360-1415), Savonarola (1452-1498), William Tyndale (1494-1536) apenas desejaram uma Igreja melhor, e mais santa. Normalmente os historiadores classificam esses homens como pertencendo ao período pré-reforma.
Seja como for, a Reforma como a conhecemos hoje aconteceu nos rastros de Lutero. O Papa Leão X achou a tese do monge agostiniano, a respeito da Justificação “somente” pela fé, uma ameaça, a condenou como heresia, e deu a Lutero a chance de se arrepender. Mas Lutero não tinha do que se arrepender, e foi excomungado. Nascia a Igreja Reformada.
E aqui estamos nós, na edição brasileira da Jornada Mundial da Juventude.
Assistindo a peregrinação de Francisco, o Papa, pelo Brasil, pude notar o quanto a Reforma foi necessária, e ainda é. Vi, por exemplo, o Papa beijando imagens, sem se preocupar que em nosso País isso normalmente debanda para a idolatria, indo contra o ensino oficial do catecismo romano. Se a situação é melhor em outros países eu não sei, posso apenas apenas dizer que o catolicismo popular no Brasil, geralmente contradiz o catecismo. Por outro lado, condenou a idolatria ao Dinheiro, o que é uma grande sacada, e uma espada no coração dos pregadores da Teologia da Prosperidade, e de outros, sejam políticos ou empreendedores. Mas penso que faltou condenar a idolatria às imagens, que o catecismo sozinho não tem conseguido tirar do coração de muitos cristãos romanos.
Apesar disso, a peregrinação do Papa entre nós deveria deixar muitos “evangélicos” envergonhados. O que vi foi alguns se movimentando para protestar contra a vinda do Papa, alegando que dinheiro público não deveria favorecer a Igreja de Roma. A raiva “laicista” destes em nada difere da que move as mulherzinhas da “marcha da vadia e dos vadios”, que, num País decente, a esta hora estariam se masturbando, não com imagens sacras, mas com as barras de ferro do xilindró. Os leitores mais sensíveis me desculpem...
Da parte evangélica, seus mais furiosos protestos vinham justamente daqueles que jamais se negam receber ajuda do Estado, ainda que um simples microfone. O pastor Juanribe Pagliarin, por exemplo, escreveu uma carta indignada, alegando que os evangélicos no máximo conseguem “um palco” do poder público - “Como as Igrejas Evangélicas no Brasil não recebem benesses oficiais desse vulto (no máximo, o governo municipal, estadual e federal colabora com palco e som para os nossos eventos), as lideranças evangélicas consideram isto um privilégio injusto e inaceitável”. Ora, desde quando o erro se mede por quanto além você foi? Se tais pastores realmente acreditam em Estado laico, não deveriam aceitar privilégio algum. O protesto da inveja é mera hipocrisia.
Além disso, na pior das hipóteses o Papa pode ao menos alegar que é Chefe de Estado, o que é fato; os pastores invejosos são chefes de que? Alguns, como Edir Macedo, segundo o Ministério Público, é “chefe de quadrilha”, e seus fiéis são tidos, pelo mesmo Ministério Público, como “vitimas de estelionato”. Olhando por esse lado, eu prefiro o Papa Francisco, que está tendo a ombridade de encarar os escândalos de sua própria Igreja como homem, de frente, sem meias palavras. Ele está acima de criticas? Não. Estou apenas dizendo que ele é mais cristão que muitos que se acham no direito de criticá-lo.
Parabéns para aqueles pastores e evangélicos que não gostaram de ver seu dinheiro financiando a Igreja de Roma, e também não aceitam que o Estado financiem seus projetos pessoais. Esses tem minha admiração.
Já era previsível que o Papa recusaria toda a pompa que, como Chefe de Estado, teria direito. Infelizmente, me lembrei com tristeza das vezes que fui em reuniões de alguns conselhos de pastores. Todos nós sabíamos que algumas cadeiras eram reservadas para os “grandes”, mesmo que ficassem toda a reunião vazia. Também sabíamos que alguns dos “grandes” só compareciam em época de eleições... Faz alguns anos que não vou a tais reuniões, será que o quadro mudou? Será que hoje, ao terminar os trabalhos, os “grandes” descem do pedestal para cumprimentar os “pequenos”, ou simplesmente indicam em qual banca comprar o “material ungido”, que, com bastante sorte, fará dos pequenos “gente grande” também? A grandeza de certos líderes “evangélicos” também é... previsível!
Provavelmente alguém irá me acusar de defender um idolatra. Mas será tão simples? E quanto a idolatria a imagens e ícones dos “evangélicos”? Boa parte é tão idolatra quanto muitos romanistas: arca da aliança, óleos consagrados, sabonetes milagrosos, rosas ungidas, vales de sal, e outras invenções da Pastores Metralhas. Sobre estes, digo que além de idolatras, são hipócritas por criticarem os católicos romanos. Claro, conheço evangélicos que, com honestidade, tem feito criticas a Roma. Gente que mantém bravamente os princípios da Reforma, e justamente por isso não critica apenas Roma, sua critica se estende ao evangelicalismo fétido que se espalhou em nosso País, feito uma praga enviada diretamente do Inferno. Ironicamente, os sinceros críticos de Roma hoje, na maioria dos casos, se ofendem quando chamados de... “evangélicos”. O tempora o mores!
Por fim, fiquei surpreso e feliz quando, em sua última entrevista, o Papa lembrou que alguns teólogos vem dizendo, desde a Idade Média, que a Igreja precisa sempre se reformar. Não sei se o Papa realmente se esqueceu de quem é essa máxima, mas o fato é que foram os Reformadores Protestantes quem levantaram essa bandeira. Ecclesia reformata semper reformanda. Com isso, os Reformadores estavam dizendo que a Igreja constantemente precisa olhar-se no espelho das Escrituras, a fim de ver o quanto se afastou dela e ser capaz de voltar, ou seja, reformar-se. Em outras palavras, para os protestantes originais, a Reforma da Igreja nunca está completa, pois ela é feita por pecadores. É maravilhoso saber que o Papa tem alguma consciência disso. E é desesperador saber que os “evangélicos” não estão dando a mínima para isso.
O Papa veio, e daí? Bem, cabe a cada um de nós, que estamos separados de Roma, perguntar a si mesmo: ainda temos razão para existir, ou Lutero pregaria suas 95 Teses na testa dos nossos pregadores? Para alguns, voltar para Roma seria bem melhor que permanecerem no abismo que se meteram.
Rev. Marcelo Lemos, diácono da Igreja Anglicana Reformada,