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Memórias de um filho de pastor (1ª parte)




Em muitos lares a agenda familiar girava em torno das atividades da igreja. Lazer e vida social só estavam permitidos quando programado pela igreja, com o povo da igreja.




É famoso o ditado popular: "Filho de peixe, peixinho é!". Esta afirmação da sabedoria popular me traz à memória minha experiência como filho de pastor e me põe em alerta, pois meus filhos também são filhos de pastor. São muitos os adjetivos e as histórias que procuram descrever o impacto do ministério pastoral na vida dos filhos. Conhecemos exemplos positivos e não tão felizes desta realidade. O fato é que ninguém possui uma família perfeita, nem mesmo os pastores. Nossas famílias sofrem as mesmas pressões experimentadas pelas outras, mas é importante reconhecer, com humildade, o convite sempre oportuno que a graça de Deus nos faz, o que nos permite um futuro diferente.

Uma das coisas mais difíceis de lidar, quando criança, era com o desafio de ser 'modelo'. Esta pressão começava em casa de forma sutil, podendo se intensificar dependendo das circunstâncias, mas havia uma cobrança generalizada: todos ao nosso redor tinham uma imagem, um modelo mental, do que era permitido ou não a um filho de pastor. Lembro-me de um sábado à tarde, quando, saindo do clube (no qual jogava basquete), fui até à igreja, onde os adolescentes jogariam futebol, antes da reunião de estudo bíblico. Tinha por hábito ler um jornal dedicado aos esportes e, com ele debaixo do braço, cheguei até a entrada do templo.

Na porta estava um diácono muito cioso de suas obrigações. Ele estendeu sua mão, pedindo-me o jornal, e eu prontamente lhe entreguei, procurando ser simpático. Para meu espanto, ele passou a rasgar todo o jornal, enquanto me dizia com uma voz grave: "No templo não é lugar de jornal desta natureza. Me admiro você, sendo filho de pastor fazer uma coisa assim!" Eu fiquei sem palavras diante daquilo. Um garoto de 13 anos de idade, que havia usado parte de seu pouco dinheiro para comprar o jornal, agora o via despedaçado por uma autoridade da igreja. Diante de meu olhar espantado, ele ainda disse: "Pode falar com teu pai que fui eu quem rasguei o teu jornal!" Eu nunca falei nada a meu pai, mas tomei a decisão de que não queria continuar naquele lugar.

É verdade que meus pais se esforçaram para que pudéssemos dizer como Josué: "Eu e minha casa serviremos ao Senhor", mas, no meu caso, e na experiência de muitos dos meus amigos filhos de pastores, o caminho para servirmos juntos ao mesmo Senhor só foi possível porque decidimos servi-lo em lugares diferentes. Foi em uma tarde de domingo, já quase no portão de casa, que me pai me chamou e disse: "Filho, vejo que esta nova igreja está lhe fazendo bem, se é lá que você quer servir ao Senhor, você tem a minha bênção e permissão para pedir sua transferência". A alegria que senti naquele momento deve ter sido inversamente proporcional a tristeza de meu pai por saber que eu agarraria aquela chance, como um caminho sem volta. Creio que, naquele momento, meus pais puderam entender o peso que estava sendo, para a fé de um adolescente, a pressão de um contexto que insistia em prescrever o manual de conduta para os filhos do pastor.

Enquanto eu saí com as bênçãos dos meus pais para buscar um espaço onde pudesse ser apenas um jovem, como outro qualquer, que desejava crescer em sua fé e viver de forma alegre sua juventude cristã, outros tiveram de se conformar a uma experiência de gaiola, até o momento em que a revolta passou a ser o marco de referência para lidar com a situação. Esta "gaiola", na qual nos queriam manter presos, era formada pela preocupação com a aparência. Não só devíamos fazer as coisas certas, mas todos deviam ver o que estávamos fazendo.

Em muitos lares a agenda familiar girava em torno das atividades da igreja. Lazer e vida social só estavam permitidos quando programado pela igreja, com o povo da igreja. Essa mentalidade de gueto foi destruindo uma forma bíblica de entender e viver a fé: era zelosa, mas desprovida de conhecimento. Os pais deixaram de influenciar seus filhos pela oração e pelo exemplo, optando por uma série de imperativos. Quando foi possível fugir da gaiola, muitos fugiram, alguns retornaram à vida na igreja, entretanto ainda há muitos sem ânimo para voltar. Foi muito bom quando entendi as riquezas e as possibilidades oferecidas pela cosmovisão bíblica para a família cristã, em especial para a família do pastor. Na próxima edição, voltamos a esse tema.


Ziel Machado  é historiador, membro da equipe pastoral da Igreja Metodista Livre Nikkei - Saúde, em São Paulo e professor da Faculdade de Teologia Metodista Livre de São Paulo. É Secretário Regional de IFES (ABU) para América Latina. Escreve para a revista Cristianismo Hoje







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