Eu Porém vos Digo...
https://genizah-virtual.blogspot.com/2013/05/eu-porem-vos-digo.html
Carlos Moreira
Quando Jesus começou a anunciar o Reino de Deus, sua
proposta não se referia a mudanças na religião de Israel, mas tratava da
transformação da consciência dos indivíduos. Estava claro que seu objetivo não
era fazer remendos na debilitada lei judaica, mas instaurar um novo proceder
que fosse para além das questões relativas à norma.
“Ouvistes o que foi dito...”, afirmava o Galileu. Sua fala
referia-se aos velhos ditames da Torá. Ele estava confrontando àquilo que era
discernido como espiritualidade, mas que, na verdade, envenenava a alma. Aquela
geração vivia calcada em regras estéreis, baseadas na estética comportamental,
que valorizavam a performance. Jesus, todavia, oferecia conteúdos éticos, que transformavam
interiores e regeneravam o ser.
“Eu porém vos digo...”, insistia Ele. Era uma proposição que
visava ressignificar práticas existenciais. A lei havia caducado,
transformara-se num conjunto de doutrinas perversas e tradições histórico-culturais.
Chegara a um ponto em que era melhor deixar alguém sofrendo com um aleijão do
que curá-lo em dia de sábado. Instaurara-se no coração dos homens a condescendência
com a hipocrisia.
Estou certo de que um dos maiores perigos da religião é quando
ela vira ideologia. Se perguntarmos a alguém em uma comunidade se ele já aceitou
a Cristo, ouviremos: “sim, eu tomei essa decisão. Certo dia levantei minha mão
e dei um passo à frente”. Esse ato, todavia, raramente é seguido de qualquer
mudança interior, pois o que o sujeito fez foi dizer que concorda com as regras
seguidas pela coletividade.
É um tipo de “decisão” que não possuiu qualquer desdobramento
para dentro, restringiu-se ao que se pode perceber do lado de fora. Ela fez com
que o sujeito incorporasse trejeitos, mudasse o tom da fala, alterasse a agenda.
Tudo isso, contudo, jamais se projetou para o ser. Conversão, de fato, diz
respeito a mudar a consciência, com vistas a que se possa materializar no
caminho “frutos dignos do arrependimento”.
Quando isso acontece, a pessoa é capaz de perceber o outro,
solidarizar-se com os caídos, tornar-se reverente com a dor do que sofre, aceitar
o diferente, buscar a justiça, falar a verdade, amar sem ser amado. Não existe
fé que não se desdobre! Uma espiritualidade voltada para si mesmo adoece todo
aquele que dela se torne refém.
“Se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus
e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus”. Essa é a difícil
constatação de Jesus. Tenho percebido que há mais gente de bem fora das igrejas
do que dentro delas. Vejo cristãos se esforçando para tentar chegar à média comportamental
da sociedade. Triste ver que somos um povo cheio de carismas, mas totalmente esvaziados
de caráter.
Em tempos de prosperidade, falsificação doutrinária,
barganhas com o sagrado, querer viver o bom e simples Evangelho coloca a pessoa
na contra-mão do fluxo. Fazer o quê? Talvez, lembrar de Isaías: “Senhor, quem
deu ouvidos a nossa pregação?”.
Carlos Moreira é editor do Genizah e também escreve na Nova Cristandade.
Persiga o @genizahvirtual no Twitter