Feridas Feitas pela Família
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Carlos Moreira
“Pois o filho despreza o pai, a filha se rebela contra a mãe, a nora, contra a sogra; os inimigos do homem são os seus próprios familiares”. Mq. 7:6
É certo que o ser humano não se desenvolve
de maneira plena em suas competências emocionais, motoras e cognitivas sem a
presença de uma família. Também é fato que ela é o núcleo sobre o qual a
sociedade se desenvolve. Por isso, quanto mais saudável e sustentável for, melhores
serão as possibilidades de se constituir um povo bem sucedido.
Contudo, não há como negar, famílias também
podem se demonstrar “usinas” de neuroses, ambientes de agressão e desconstrução
do ser, lugares que fazem a psique adoecer, casas onde a erosão da vida provoca
feridas tão profundas que acabam tatuadas na alma, ficam “impressas” no
indivíduo para todo o sempre. Não se enganou Lutero, o grande reformador, quando
proferiu: “A família é a fonte da prosperidade e da desgraça dos povos”.
O texto citado acima nos remete ao ano 690 a .C. Vivendo as agruras
de seu tempo, mergulhado em meio a uma sociedade desprovida de significados, o
profeta Miquéias nos expõe o “mosaico” da dessignificação a qual o ser humano
pode chegar. Na sua leitura lúcida e realista, constata que até mesmo as
relações parentais haviam perdido o seu propósito, pois o amor afastara-se, em
definitivo, do coração dos homens.
Fato é que as Escrituras não camuflam os
dramas vividos em
família. Pelo contrário, em suas páginas encontramos, por
vezes, com riqueza de detalhes, dramas dos mais diversos experienciados dentro da
própria casa, os quais envolvem pai, mãe, filhos, genro, cunhada, nora, sogra,
tios, primos e sobrinhos. Nem mesmo Jesus foi poupado de viver tais
circunstâncias, pois, em João 7 verso 5, vemos que seus próprios irmãos
sanguíneos não acreditavam nele, ainda que vissem as obras que Ele realizava.
Só para demonstrar como o tema é complexo e
difícil, lembre-se que Caim matou o seu irmão Abel; os filhos de Noé zombaram
do pai que havia se excedido na bebida; Ló se desentendeu com Abraão e se
apartou dele; Jacó enganou o pai e roubou o irmão com a aquiescência da mãe; os
irmãos de José, com ciúmes, o venderam como escravo; Dalila traiu o seu marido,
Sansão, por 1.100 moedas de prata; Absalão matou seu irmão Amnom e este, por
sua vez, estuprou a própria irmã; a mulher de Jó aconselhou-o a blasfemar
contra Deus. Se formos observar as leis dadas a Moisés, veremos quantas
citações existem para regulamentar as conflituosas relações entre os membros de
uma família. Certa estava Madre Teresa de Calcutá ao referir: “É fácil amar os
que estão longe. Mas nem sempre é fácil amar os que vivem ao nosso lado”.
De fato, Miquéias fez uma leitura bastante
coerente quando afirmou, a partir de sua própria percepção de mundo, que os
inimigos do homem estavam em sua própria casa, dentro da família. Isso acontece
porque as relações familiares são mesmo difíceis, cheias de idiossincrasias,
pois, aqueles a quem mais amamos, não raro, são os que mais profundamente são
capazes de nos ferir.
Quando o indivíduo nasce em um lar
equilibrado, onde os relacionamentos são saudáveis, onde há respeito, amor,
incentivo, a vida certamente é muito mais fácil de ser vivida. Mas, o que fazer
quando a família a qual pertencemos é uma família doente? O que fazer quando
conviver no ambiente familiar produz feridas na alma, quando estar entre
aqueles que são do nosso sangue significa ficar exposto a toda sorte de
problemas, humilhações, destemperos, agressões e maus tratos?
E mais... O que fazer com as prementes advertências
das Escrituras sobre o tema? Como lidar com passagens tais como: “Mas, se
alguém não tem cuidado dos seus, e principalmente dos da sua família, negou a
fé, e é pior do que o infiel” 1ª Tm 5:8; ou: “Filhos, obedeçam a seus pais no
Senhor, pois isso é justo”. “Honra teu pai e tua mãe", este é o primeiro
mandamento com promessa...” Ef. 6:1-3; e ainda: “Façam todo o possível para
viver em paz com todos”. Rm. 12:18.
Bem, numa leitura "rasa", “fria”, sem
observarmos certos contextos familiares, tudo parece muito simples e óbvio.
Porém, há casos em que a “letra” acaba sendo usada para a morte, não para a
vida! O que fazer, por exemplo, com um pai que molestou durante toda a infância
a filha? Ou com o marido que traiu a esposa tendo constituído uma outra
família? Ou com a sogra que envenena o filho contra a nora? Ou com o genro que
quer afastar a filha do convívio com os pais? Questões como estas devem
levar os pastores a fazer uma análise muito cuidadosa antes de proferir alguma
opinião ou dar algum conselho.
Eu não estou dizendo aqui que nós devemos
relativizar as Escrituras, que ela se aplica a uma situação e a outra não. Mas há de se considerar que existem situações de exceção. Lembremos, por exemplo, do que disse Jesus sobre o divórcio, que ele se constituía uma
concessão de Deus por causa da dureza do coração dos homens. O propósito de
Deus é que o casamento seja indissolúvel, mas há situações em que o convívio
conjugal torna-se insalubre ao ser. Nestes casos, lembrando Paulo, que afirma:
“Deus os tem chamado a paz”, é melhor apartar-se do que viver, literalmente, no
inferno!
Como pastor, tenho me deparado com muitos
dramas familiares. Parece não haver algo que seja tão destrutivo na vida das
pessoas quanto estas questões. E em circunstâncias desta natureza, tenho sempre
pedido a Deus que me dê sabedoria para que minha palavra seja conforme o
“espírito” do Evangelho, e não conforme o “espírito” da Lei. Certo é que cada
caso é um caso, e que não devemos nos precipitar com análises legalistas e com
sentenças temerárias. Por isso, nunca esqueço o que disse
Shakespeare: “Todo mundo é capaz de suportar uma dor, exceto quem a sente”.
Família é coisa santa, sagrada e
maravilhosa. Mas também pode ser uma tragédia na vida de muitos. No final do
Velho Testamento, o profeta Malaquias adverte: “Ele fará com que os corações
dos pais se voltem para seus filhos, e os corações dos filhos para seus pais;
do contrário eu virei e castigarei a terra com maldição.” Ml. 4:6. Essa “sentença”
nos remete ao fato de que a desagregação gerada pela crise familiar produz
tanta desarmonia e desgraça que aquilo que acontece no chão da terra acaba se
constituindo “ferida”, e não paz e bem na vida.
O psicanalista francês Charles Melman, de
76 anos, colaborador de Jacques Lacan, herdeiro de Freud, atento observador da
realidade contemporânea, afirmou: “Pela primeira vez na história, a instituição
familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis.
Impressiona-me que antropólogos e sociólogos não se interessem por isso”. Em
suma, o que vejo é que sua percepção, mesmo não sendo ele um “homem do
sagrado”, reforça ainda mais o que afirmou Malaquias, cerca de 2.500 anos
atrás.
Eu sei que família é algo que nasceu no
coração de Deus, mas também não tenho como negar que, por vezes, e isso cada
vez de forma mais recorrente, ela pode produzir mais mal do que bem. Como
afirmou Sartre, diante de um contexto específico: “Família é como a varíola: a
gente tem quando criança e fica marcado para o resto da vida”.
Bem, se você se encontra entre os que não
têm como manter vínculos familiares sadios, se sua família complica mais do que
ajuda, se o convívio, por questões diversas, tornou-se insustentável, não se
desespere. Tenho visto, com o passar dos anos, que Deus sempre encontra formas
de conspirar a nosso favor. Assim, muitos são abençoados com “pais”, “mães”,
“irmãos” e “irmãs” que são do coração, fazem parte da “família da fé”, foram
colocados pelo próprio Senhor em nossas vidas para suprir as lacunas que
ficaram em nossas almas.
Agora, preste atenção: não guarde rancor e
sentimentos de amargura contra os seus! Perdoe! Não há nada mais destrutivo na
vida do que carregar sentimentos maus contra pessoas da própria família. No
mais, faça o caminho, em paz e com alegria, e seja agradecido por aquilo que a
vida lhe trouxer, pois tudo acabará corroborando para te fazer, sempre, alguém
melhor!
Carlos Moreira é editor assistente do Genizah e escreve também para a Nova Cristandade.
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