Carta à Bispa Evônia *
https://genizah-virtual.blogspot.com/2012/03/carta-bispa-evonia.html
Augustus Nicodemus Lopes
[*Nota – é mais uma carta ficticia, gênero que uso como maneira de
tornar as minhas idéias mais interessantes para o leitor. Minha esposa
não tem (ainda) nenhuma amiga que virou bispa.]
Minha cara Evônia,
Minha
esposa me falou do encontro casual que vocês duas tiveram no shopping
semana passada. Ela estava muito feliz em rever você e relembrar os
tempos do ginásio e da igreja que vocês frequentavam. Aí ela me contou
que você foi consagrada pastora e depois bispa desta outra denominação
que você tinha começado a frequentar.
Ela também me mostrou os
e-mails que vocês trocaram sobre este assunto, em que você tenta
justificar o fato de ser uma pastora e bispa, já que minha esposa tinha
estranhado isto na conversa que vocês tiveram. Ela me pediu para ler e
comentar seus argumentos e contra-argumentos. Não pretendo ofendê-la de
maneira nenhuma – nem mesmo conheço você pessoalmente. Mas faço estes
comentários para ver se de alguma forma posso ser útil na sua reflexão
sobre o ter aceitado o cargo de pastora e de bispa.
Acho, para
começar, que você ser bispa vem de uma atitude de sua comunidade para
com as Escrituras, que equivale a considerá-la condicionada à visão
patriarcal e machista da época. Ou seja, ela é nossa regra, mas não para
todas as coisas. Ao rejeitar o ensinamento da Bíblia sobre liderança,
adota-se outro parâmetro, que geralmente é o pensamento e o espírito da
época.
E é claro, Evônia, que na nossa cultura a mulher –
especialmente as inteligentes e dedicadas como você – ocupa todas as
posições de liderança disponíveis, desde CEO de empresas a presidência
da República – se a Dilma ganhar. Portanto, sem o ensinamento bíblico
como âncora, nada mais natural que as igrejas também coloquem em sua
liderança presbíteras, pastoras, bispas e apóstolas.
Mas, a
pergunta que você tem que fazer, Evônia, é o que a Bíblia ensina sobre
mulheres assumirem a liderança da igreja e se este ensino se aplica aos
nossos dias. Não escondo a minha opinião. Para mim, a liderança da
igreja foi entregue pelo Senhor Jesus e por seus apóstolos a homens
cristãos qualificados. E este padrão, claramente encontrado na Bíblia,
vale como norma para nossos dias, pois se baseia em princípios
teológicos e não culturais. Reflita no seguinte.
1. Embora
mulheres tenham sido juízas e profetisas (Jz 4.4; 2Re 22.14) em Israel
nunca foram ungidas, consagradas e ordenadas como sacerdotisas, para
cuidar do serviço sagrado, das coisas de Deus, conduzir o culto no
templo e ensinar o povo de Deus, que eram as funções do sacerdote (Ml
2.7). Encontramos profetisas no Novo Testamento, como as filhas de
Felipe (At 21.9; 1Co 11.5), mas não encontramos sacerdotisas, isto é,
presbíteras, pastoras, bispas, apóstolas. Apelar à Débora e Hulda, como
você fez em seu e-mail, prova somente que Deus pode usar mulheres para
falar ao seu povo. Não prova que elas tenham que ser ordenadas.
2.
Você disse à minha esposa que Jesus não escolheu mulheres para
apóstolas porque ele não queria escandalizar a sociedade machista de sua
época. Será, Evônia? O Senhor Jesus rompeu com vários paradigmas
culturais de sua época. Ele falou com mulheres (Jo 8.10-11), inclusive
com samaritanas (Jo 4.7), quebrou o sábado (Jo 5.18), as leis da dieta
religiosa dos judeus (Mt 7.2), relacionou-se com gentios (Mt 4.15). Se
ele achasse que era a coisa certa a fazer, certamente teria escolhido
mulheres para constar entre os doze apóstolos que nomeou. Mas, não o
fez, apesar de ter em sua companhia mulheres que o seguiam e serviam,
como Maria Madalena, Marta e Maria sua irmã (Lc 8.1-2).
3. Por
falar nisto, lembre também que os apóstolos, por sua vez, quando tiveram
a chance de incluir uma mulher no círculo apostólico em lugar de Judas,
escolheram um homem, Matias (At 1.26), mesmo que houvesse mulheres
proeminentes na assembléia, como a própria Maria, mãe de Jesus (At
1.14-15) – que escolha mais lógica do que ela? E mais tarde, quando
resolveram criar um grupo que cuidasse das viúvas da igreja,
determinaram que fossem escolhidos sete homens, quando o natural e
cultural seria supor que as viúvas seriam mais bem atendidas por outras
mulheres (Atos 6.1-7).
4. Tem mais. Nas instruções que deram às
igrejas sobre presbíteros e diáconos, os apóstolos determinaram que eles
deveriam ser marido de uma só mulher e deveriam governar bem a casa
deles – obviamente eles tinham em mente homens cristãos (1Tm 3.2,12; Tt
1.6) e não mulheres, ainda que capazes, piedosas e dedicadas, como você.
E mesmo que reconhecessem o importante e crucial papel da mulher cristã
no bom andamento das igrejas, não as colocaram na liderança das
comunidades, proibindo que elas ensinassem com a autoridade que era
própria do homem (1Tm 2.12), que participassem na inquirição dos
profetas, o que poderia levar à aparência de que estavam exercendo
autoridade sobre o homem (1Co 14.29-35). Eles também estabeleceram que o
homem é o cabeça da mulher (1Co 11.3; Ef 5.23), uma analogia que
claramente atribui ao homem o papel de liderança.
5. Você
retrucou à minha esposa na troca de e-mails que nenhuma destas passagens
se aplica hoje, pois são culturais. Mas, será, Evônia, que estas
orientações foram resultado da influência da cultura patriarcalista e
machista daquela época nos autores bíblicos? Tomemos Paulo, por exemplo.
Será que ele era mesmo um machista, que tinha problemas com as mulheres
e suspeitava que elas viviam constantemente tramando para assumir a
liderança das igrejas que ele fundou, como você argumentou? Será que um
machista deste tipo diria que as mulheres têm direito ao seu próprio
marido, que elas têm direitos sexuais iguais ao homem, bem como o
direito de separar-se quando o marido resolve abandoná-la? (1Co
7.2-4,15) Um machista determinaria que os homens deveriam amar a própria
esposa como amavam a si mesmos? (Ef 5.28,33). Um machista se referiria a
uma mulher admitindo que ela tinha sido sua protetora, como Paulo o faz
com Febe (Rm 16.1-2)?
6. Agora, se Paulo foi realmente
influenciado pela cultura de sua época ao proibir as mulheres de assumir
a liderança das igrejas, o que me impede de pensar que a mesma coisa
aconteceu quando ele ensinou, por exemplo, que o homossexualismo é uma
distorção da natureza acarretada pelo abandono de Deus (Rm 1.24-28) e
que os sodomitas e efeminados não herdarão o Reino de Deus (1Co 6.9-11)?
Você defende também, Evônia, que estas passagens são culturais e que se
Paulo vivesse hoje teria outra opinião sobre a homossexualidade?
Pergunto isto pois em outras igrejas este argumento está sendo usado.
7.
Tem mais, se você ainda tiver um tempinho para me ouvir. As alegações
apostólicas não me soam culturais. Paulo argumenta que o homem é o
cabeça da mulher a partir de um encadeamento hierárquico que tem início
em Deus Pai, descendo pelo Filho, pelo homem e chegando até a mulher
(1Co 11.3).[1] Este argumento me parece bem teológico, como aquele que
faz uma analogia entre marido e mulher e Cristo e a igreja, “o marido é o
cabeça da mulher como Cristo é o cabeça da igreja” (Ef 5.23). Não
consigo imaginar uma analogia mais teológica do que esta para
estabelecer a liderança masculina. E quando Paulo restringe a
participação da mulher no ensino autoritativo –que é próprio do homem –
argumenta a partir do relato da criação e da queda (1Tm 2.12-14).[2]
8.
Você já deve ter percebido que para legitimar sua posição como bispa
você teve que dar um jeito neste padrão de liderança exclusiva masculina
que é claramente ensinado na Bíblia e na ausência de evidências de que
mulheres assumiram esta liderança. Não tem como aceitar ser bispa e ao
mesmo tempo manter que a Bíblia toda é a Palavra de Deus para nossos
dias. E foi assim que você adotou esta postura de dizer que a liderança
exclusiva masculina é resultado da cosmovisão patriarcal e machista dos
autores do Antigo e Novo Testamentos, e que portanto não pode ser mais
usada em nossos dias, quando os tempos mudaram, e as mulheres se
emanciparam e passaram a assumir a liderança em todas as áreas da vida.
Em outras palavras, como você mesmo confirmou em seu e-mail, a Bíblia é
para você um livro culturalmente condicionado e só devemos aplicar dele
aquelas partes que estão em harmonia e consenso com nossa própria
cultura. Eu sei que você não disse isto com estas exatas palavras, mas a
impressão que fica é que você considera a Bíblia como retrógrada e
ultrapassada e que o modelo de liderança que ela ensina não serve de
paradigma para a liderança moderna da Igreja de Cristo.
Quando se
chega a este nível, então, para mim, a porta está aberta para a entrada
de qualquer coisa que seja aceitável em nossa cultura, mesmo que seja
condenada nas Escrituras. Como você poderá, como bispa, responder
biblicamente aos jovens de sua igreja que disserem que o casamento está
ultrapassado e que sexo antes do casamento é normal e mesmo o
relacionamento homossexual? Como você vai orientar biblicamente aquele
casal que acha normal terem casos fora do casamento, desde que estejam
de acordo entre eles, e que acham que adultério é alguma coisa do
passado?
Sabe Evônia, você e a sua comunidade não estão sozinhas
nessa distorção. Na realidade esse pensamento é também popularizado por
seminários de denominações tradicionais e professores de Bíblia que
passaram a questionar a infalibilidade das Escrituras, utilizando o
método histórico crítico, ensinando em sala de aula que Paulo e os
demais autores do Novo Testamento foram influenciados pela visão
patriarcal e machista do mundo da época deles. Só podia dar nisso... na
hora que os pastores, presbíteros e as próprias igrejas relativizam o
ensino das Escrituras, considerando-o preso ao séc. I e
irremediavelmente condicionado à visão de mundo antiga, a igreja perde o
referencial, o parâmetro, o norte, o prumo – e como ninguém vive sem
estas coisas, elege a cultura como guia.
Termino reiterando meu
apreço e respeito por você como mulher cristã e pedindo desculpas se não
posso me dirigir a você, em nossa correspondência pessoal, como “bispa”
Evônia. Espero que meus motivos tenham ficado claros.
Um abraço,
Augustus
NOTAS
[1]
Esse encadeamento hierárquico se refere à economia da Trindade e trata
das diferentes funções assumidas pelas Pessoas da Trindade na salvação
do homem. Ontologicamente, Pai, Filho e Espírito Santo são iguais em
honra, glória, poder, majestade, como afirmam nossas confissões
reformadas.
[2] Veja minha interpretação desta passagem e de outras no artigo da Fides Reformata “Ordenação Feminina”.
SOBRE O TEMA DA ORDENAÇÃO FEMININA LEIA TAMBÉM:
Ordenação de Mulheres para o Ministério Pastoral da Igreja
Sete razões favoráveis a ordenação de mulheres pastoras
Pastoras?!?
Persiga o @genizahvirtual no Twitter