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Gente. Só gente.

Gente é ruim, mas é boa. Todas as gentes do mundo têm algo de Deus. Um indivíduo, um sujeito qualquer – gente simples, que vai construindo a história de Deus no mundo


Bráulia Inês Ribeiro


Uma vida é importante. Um indivíduo, um sujeito qualquer – Maria, Pedro, Carolina, Raimundo... Gente qualquer, gente simples. Gente que vai construindo a história de Deus no mundo. Não é fácil viver à luz deste entendimento. Vivemos cercados de aparatos que nos afastam da realidade simples de quem nós somos. Entretenimentos, atos, rituais, sistemas conceituais religiosos. É difícil a gente ser real; ser apenas gente. Na maioria das vezes, representamos. Representamos o que gostaríamos de ser ou que pensamos que Deus gostaria de que nós fôssemos. Representamos religião – como se Ele, que vê lá de cima e sabe tudo, não soubesse quem somos, totalmente e pelo avesso.

“Gente quer ser feliz, gente quer respirar pelo nariz”, diz Caetano Veloso. Gente é pra brilhar. No filme Central do Brasil, as caras do povo pedindo cartas sempre me fazem chorar. “Fala pra mãe que eu estou bem”, diz a prostituta, que tem família católica que a ama; “Vê se me esquece, seu cafajeste!”, fala outra mulher dolorida. Saudade, amor, vergonha, dor; coisa de gente.

Amo a Dôra de Central. Ela teve a cara de pau de vender a criança, trocando-a por uma televisão com controle remoto, na sua ética dúbia de uma vida ressequida, deserta de amor. Mas tem coragem de resgatá-la de volta, e vai se entregando a ela aos poucos, aprendendo com uma criança solitária uma linguagem nova. Da vida de antes, Dôra só conhecia amarguras – amargura contra o pai, contra si mesma, contra todos. Mas vai aprendendo com o menino a língua do amor. “Você está bonita, Dora, diz o menino, e lhe compra um vestido. E ela anda com ele no meio da multidão de casinhas iguais e lhe encontra a família. Aí tem que tomar a decisão de deixá-lo, para o que ela considera um destino melhor do que poderia lhe oferecer. Dôra se arruma na madrugada, coloca o vestido novo e passa batom. E no ônibus, indo embora, lhe escreve: “Me lembro que meu pai me deixou apitar a locomotiva, coisa muita importante, que não era pra ele fazer pra uma menininha...” Pela primeira vez, Dôra perdoa. Alcançou a redenção pelo tanto que foi amada pelo menino solitário.

Gente é ruim, mas é boa. Todas as gentes do mundo têm algo de Deus. Uma vez, quando eu cruzava uma rua de Belo Horizonte com uma amiga, ela disse uma coisa que me martela na cabeça até hoje. Havia um bêbado caído no meio-fio, semimorto, imundo. Visões assim são tão normais na cidade grande que a gente olha sem ver. “Veja, Bráulia, a imagem e semelhança de Deus”, apontou. Era verdade. Gente legal e gente desconjuntada, todos somos a imagem do Criador. Nossa jornada com ele não começa quando nos convertemos, como alguns pensam, como se o Senhor fosse cego para nós antes de pertencermos ao rebanho evangélico, ou como se o Pai fosse algum tipo de religioso que discrimina pessoas.

A cantora Baby do Brasil diz que Jesus não é evangélico, e eu concordo inteiramente. Ele é Deus. Sua jornada conosco começa antes de nós nascermos, já que seus olhos nos viram quando éramos embriões, conforme diz a Bíblia – e prossegue nos vendo enquanto ainda respirarmos. Sua jornada conosco leva em conta nossas experiências, ainda que dolorosas: as tribulações que passamos, os dons, e até as dúvidas e falta de fé que carregamos. Não é tudo anulado aos pés da cruz, mas tudo é reorganizado de forma a fazer sentido, a gerar vida em outros, a produzir cura para nós e para quem chegar perto.

Lembro-me daquele homem “pobre mas sábio” que, com sua sabedoria, salvou sozinho uma cidade. E nós repetimos o bordão que diz que “uma andorinha não faz verão”, achando que está certo. E o que dizer de tantos outros homens mencionados nas genealogias, pessoas de obscuras trajetórias mas de cujo nome que conhecemos hoje e até colocamos em nossos filhos. O que fizeram e deixaram de fazer ficou para a posteridade. Abraão tinha fé; mas também era covarde, já que mentiu sobre sua verdadeira relação com sua mulher Sara. José perdoou a seus irmãos, mas Davi deixou de perdoar seu filho Absalão. “Gente espelho da vida, doce mistério...”

Jesus, ressuscitado, caminhava na estrada com dois discípulos. Abatidos, eles narravam para sua percepção do que havia acontecido alguns dias antes. O “profeta” havia morrido. Fôra assassinado pelos religiosos. Deviam estar pensando que, afinal de contas, aquele rabi não era quem eles esperavam que fosse. Jesus se impacienta um pouco com eles: “Como é que vocês custam a entender e demoram a crer em tudo o que os profetas falaram?”, questiona. O Deus que eles esperavam não era gente – então, não poderia ter morrido. Mas Jesus, o Deus Criador em quem habitava toda a plenitude da divindade, ainda era gente. E os discípulos de Emaús não o reconhecem ali no ato religioso, enquanto ele lhes ensinava as escrituras. Não o reconhecem pela pregação, apesar de depois perceberem que tinha sido poderosa. Vieram a reconhecê-lo quando se sentaram juntos para comer. No partir do pão, quando Cristo deu graças e lhes ofereceu uma porção – ato cotidiano e rotineiro, ou seja, atitude de gente, não de um religioso ou de um pastor –, só aí seus olhos se abriram para reconhecer o Salvador.

Às vezes, me pergunto se a Igreja sabe quem é. Nós nos cremos representantes de Cristo na terra, mas pensamos ser melhores que ele. Não precisamos ser gente – basta-nos o ofício religioso, o distanciamento cultural do que chamamos de “mundo”, e que confundimos com santificação. Basta-nos falar um jargão próprio e criar redomas santas onde nos escondemos. E aí, pensamos estar ganhando o mundo e nos aproximando do Senhor. Nesse processo, esquecemos quem somos, e de que é tudo muito mais simples.

“Gente espelho de estrelas, reflexo de esplendor

Não, meu nêgo, não traia nunca esta força não

Esta força que mora em seu coração”


Bráulia colabora com a subversão do Genizah
Comportamento 2624723207566758198

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  1. Então, onde na bíblia fala que abraao mentiu sobre seu relacionamento com sara?

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  2. Falou muito, citou filme, citou música, mas não citou bíblia, faltou versículo para confirmar sua opinião irmã.

    Tudo, inclusive, nosso direito de não concordar com as coisas, deve ser confirmado pela bíblia. Do contrário, você acaba falhando no propósito de ensinar a verdadeira palavra de Deus. Você vai acabar criando um bando de gente inconformada, intelectuais, mas sem bíblia. E sem bíblia a vida espiritual das pessoas está defasada.

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  3. Ao amado anônimo que perguntou "onde na bíblia fala que Abraão mentiu sobre seu relacionamento com Sara", leia Gn 12.10-20 e Gn 20.
    Interessante o ponto de vista da Bráulia, sobretudo no que tange ao fato de que, a todo o tempo, representamos.
    "Na realidade, somos eternamente atores representando a nós mesmos. O mais interessante é que não apenas representamos. Não apenas temos sobre os nossos ombros o peso de sermos os protagonistas. Também escrevemos e dirigimos, além de sermos os contra-regras, figurinistas e maquiadores nessa novela que é a nossa existência. Ou seja, devemos ter todo o cuidado do mundo, mesmo nos mínimos detalhes, para que todas as cenas, atos e falas saiam conforme o previsto. Devemos ao máximo nos esmerarmos para não cometermos gafes, esquecermos o texto. Nem sempre contracenamos com alguém que possa nos dar a deixa; por vezes apresentamos um monólogo, somos o único foco das atenções. Mas uma coisa é certa: por maior que seja a dificuldade que encontramos na cena, nunca estamos sozinhos: aquele que concebeu nosso personagem observa todos os nossos passos e pronto está a amparar, animar, auxiliar e ensinar sempre que necessário. E não são poucas as vezes que precisamos." (trecho do meu tcc para a graduação, de 2008)

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