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O tímido e o lavabo de Belo Horizonte

Rubinho Pirola


Já conheci gente tímida, mas Almir, sinceramente, foi a pior delas.
Ele não podia ser considerado nem tímido. Era travado!

Diziam os seus amigos de engenharia na UFMG, de Belo Horizonte, onde estudava vindo do Triângulo Mineiro, que Almir quando nasceu, não teve um parto propriamente. A turma contava às gargalhadas que por conta de muita gente na sala de parto e por não ter sido chamado a sair do ventre da mãe, teve de ser puxado à fórceps e, depois das palmadas do médico, pediu desculpas ao doutor.

Até responder questões de prova e questionários que não fossem daqueles de se por cruzinhas, Almir começava sempre por um “Bem,... na minha opinião”, quase se desculpando por ter sequer algo na cabeça.

Era de constranger – ou de rir – assisti-lo gaguejar em toda e qualquer situação.

Vai dai, que o travadão, entrava ano e saia ano, continuava sozinho e, bastava tocar no assunto de namoro, pro tal rapaz boa-pinta, de princípios e cristão desses de fazer calar até declaração de imposto de renda ficar corado mais do que camarão no vapor. Era na verdade um assunto no qual não se podia tocar.

De tanto as mães piedosas da igreja da qual fazia parte orarem e tudo fazerem para que alguém tivesse a bênção de desencalhar aquele partidão vindo do interior arrumando-lhe enfim o seu par de sapato. E foi assim que, milagre da boa, Almir arrumou a Janaína, morena simpática e já meio tendo que perdido o ônibus do tempo, pra ser lírico ou, encalhada, pra ser rasgado.  Era ela a filha mais velha da dona Cotó, antiga coluna da intercessão da comunidade que, apesar de há muito já não aparecer na igreja por conta de uma congregaçãozinha bem mais perto da sua casa no Bairro Sion, para onde fora transferida, era uma crente fervorosa.

Nem vou considerar como é que isso se deu, partindo da ideia que o Almir, tímido como era, daqueles de pedir desculpas por esbarrar em poste, a tão esperada notícia encheu os seus pastores de alegria e de ânimo para crerem em milagres, qualquer um que fosse.

Nos bastidores da igreja, dizia-se entre sorrisinhos escondidos, que na verdade, Janaína é que dera o bote, sabendo que daquele mato não sairia coelho. Dizem que ela chegou (depois de muita oração, indiretas, diretas, insinuações e tudo o mais) e simplesmente perguntou-lhe na cara: “Você me aceita em namoro?”.

Conhecendo aquela ovelha, um pastor experiente, imaginaria que, nem que fosse por não conseguir arrumar uma desculpa, uma resposta incisiva e mais forte, simplesmente o Almir deve ter balançado os ombros e, no seu estilo do “deixa como está pra ver como é que fica”,  soltou algum murmúrio e, como quem cala consente, começaram o romance.
Era de dar gosto ver o casalzinho andando de mãos dadas pela igreja, assentando-se junto nas reuniões... e nas sociais. Até que... o tal acidente veio.

Não bastando à Janaína ter arrumado o seu par e a dona Cotó o tão esperado genro, marcaram-lhe um almoço, a contragosto desse, na casa da família, num domingão, onde queriam conhecer tão grande bênção. 

Para quem conhece Minas Gerais e a sua gente rigorosa com os bons costumes tradicionais e também o que vale desencalhar uma filha meio passada da idade, já imagina o evento. Ele teve direito à mãe, três irmãs, duas tias, uma vizinha chegada ou enxerida (sempre há uma) e mais: tutú de feijão, couve, torresminho, muita carne de panela, quindins, etc...

Fazia um calor excepcionalmente forte em BH o que, juntando ao seu nervosismo fazia com que Almir suasse mais que tampa de marmita. E lá foi ele.

Quase sem conseguir falar ou até andar, o rapaz foi colocado na ponta de mesa entre os olhares do mulherio – de alto a baixo, com os que se usa pra medir um cavalo em leilão. E dá-lhe perguntas: De onde veio? Quantos irmãos tem? Do que você gosta? O que pretende fazer?... até um “Você se pretende casar logo? “saiu, na mesa agora transformada em sala de interrogatório policial.

Eu posso imaginar hoje que foi muito pra um rapaz que suava até em exame de sangue, passar por tal constrangimento.

Mas, para encurtar e indo logo pro desastre, entre perguntas, risadas e confissões sobre a vida da moça e da família, Almir, nem que fosse para fugir de ter de falar, empanturrou-se do que a dona Cotó fazia de melhor na cozinha. E... dá-lhe calor. E dá-lhe comida...

Quando estava perto do fim do martírio, imaginou Almir, a sogra ofereceu-lhe pra arrematar o festim, logo após o pudim de leite, um licorzinho de Jenipapo que a tal vizinha trouxera e que, fazia questão de dizer – só oferecia em ocasiões como aquela.

Foi quando o Almir sente um leve tremor acompanhado por um fio de suor gélido a descer pela calha das costas, rapidamente transformado em sismo com alguns bons graus na Escala de Richter. Sua mente então, como num alerta de incêndio, avisa-lhe: Có-li-ca!

Almir ficou pálido. O tremor agora transformara-se em peso no baixo ventre enquanto a sua timidez entra em briga com a sua aflição e o máximo que o rapaz, pressentindo que uma tragédia iria-se consumar em segundos, balbuciou: “Têm aqui algum lavabo? Não estou-me sentindo bem”, certamente com vergonha de admitir que precisava mesmo era de uma privada.

Faltando-lhe a cor morena característica e com o suor escorrendo pela testa, o pobre Almir conseguiu enxergar só um dedinho apontando à sua esquerda uma porta entreaberta. Foi o que precisou pra segurar a, digamos, honra e dignidade e correr.

Alguma fórmula matemática deve existir que explique a força inversamente proporcional que um intestino em convulsão tem, aumentando a cada metro em relação à diminuição da distância que nos separa de um vaso sanitário, mas a verdade é que o Almir mal fechou a porta atrás de si, para que, abrindo, quase rasgando as calças, nota que o pequeno cômodo só tinha mesmo e nada além de uma pia e uma torneira. Como já vi em muitos lugares desse Brasil, alguns lavabos têm somente a pia, para algum visitante, ou os que chegam de fora possam só lavarem as mãos. E ai reuniram – ou faltaram, depende do ponto de vista - os elementos pra bagunça.

Nessa hora, o indeciso rapaz nem sequer pensou – pulou assentado sobre a pia e deu vazão à sua pobre condição humana, fisiológica e animal.

Mas como temos aprendido que desgraça para ser desgraça nunca pode vir só, nem terremoto sem um tsunami no rastro,  eis que alguém grita do outro lado da porta – Almir, desculpe, meu querido, a torneira, ... ao que ele desesperado vira-se para trás, a meio do serviço a tempo de ouvir: “...Ela não funciona. Não há água!”.

O pobre e infeliz chegou a abrir a torneira que, num ranger soltou no máximo um “sssssss....” e foi só! Nem uma gota!

Almir contou-me que na hora, só pode segurar o grito de desespero a meio da garganta e sussurrar: “Senhor, me perdoe, mas agora que começou, acabe logo com isso e me mate, por favor!”.

Disse-me constrangido, anos depois e em tom misto de desabafo e confissão: "Eu pedi mesmo para morrer, pastor!”.

Olhou ainda para o alto onde vislumbrou nada além de uma janelinha veneziana onde não passava nem o braço, quanto mais o resto, numa tentação de fugir, desaparecer da cena do crime.

Do outro lado da porta, Janaína pergunta-lhe: “Você está bem, querido?”

Ao que ele responde tentando disfarçar  – “Sim, estou! Tive uma queda de pressão e estou só tomando um fôlego e já vou!”. Olhou do lado, contara-me depois, à procura de uma revista, jornal... folha de cheque, até nota de dólar valia, qualquer coisa que ao menos lhe pudesse ajudar, minimente que fosse pra se... recompor. E não havia lá nada. Mas essa parte, vou pular e deixar à imaginação de quem acha que nunca vai passar por isso.

Como me contou, constrangido, alguma coisa recomposto, ereto, firme, Almir, de alma lavada ou melhor, de entranhas vazias, como qualquer pessoa normal (e com a pia cheia), conseguiu abrir a porta e fechar-lhe numa rapidez digna de um super-homem, ainda disse à toda a plateia: “Vou ali ao carro apanhar um remédio que esqueci de tomar hoje cedo e já volto”.
Andou mais rápido que pode e sumiu. Da igreja, da namorada e até do Bairro Sion, de onde desviou-se por algumas semanas antes de conseguir uma transferência para uma universidade no outro lado do estado.

Timidezes à parte, aprendi uma lição: Mais vale ser sincero, do que acabar um romance. E esse, seguramente, prometia muito.


*Os nomes e os lugares foram trocados por motivos óbvios..




Rubinho Pirola está abandonando a apologética para ingressar firme na escatologia aqui no Genizah




 

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