Ilari-lariê, aleluia
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Digão
Recentemente, a senhora Maria da Graça
Meneghel veio à baila novamente. Certa apresentadora de TV faria uma
homenagem a Airton Senna, falecido piloto brasileiro e o último de sua
espécie (a não ser que você leve o Barrichello a sério). Porém, esta
homenagem não poderia ser completa, uma vez que o nome de Meneghel,
antiga namorada de Senna, não poderia ser citado, já que esta se
encontra em litígio judicial contra a emissora de TV por ter veiculado
fotos suas em que ela aparece desinibidamente na revista Playboy.
Pois é, este é um grande paradoxo da
nossa cultura brasileira: Meneghel, que é mais conhecida por seu apelido
infantil de Xuxa, despontou na sua carreira de modelo como uma espécie
de furacão sexual. Namorou Pelé (o responsável pelo seu estrelato),
posou pelada inúmeras vezes, estrelou um filme em que simula sexo com um
ator que à época tinha 12 anos (“Amor estranho amor”), começou a
apresentar um programa de TV na antiga Rede Manchete onde as roupas eram
mínimas, bem como sua paciência com as crianças (seus esculachos com a
meninada ficaram famosos).
Seu sucesso (e a ajudinha de Pelé) a levaram à
Globo, onde até hoje se encontra. No auge do seu sucesso, chegou a
protagonizar cenas lamentáveis, como o incentivo a crianças a fazer a
dança na boquinha da garrafa. Carla Perez (aquela do “i de iscola”)
chegou a declarar que Xuxa foi seu grande modelo. Hoje, depois da
maternidade, Xuxa encaretou e quer apagar seu passado de erotismo
infantil, recorrendo aos meios legais possíveis para isso.
Enfim, uma legião de meninas (e alguns
meninos aboiolados) foi diretamente influenciada por Xuxa e seu
tratamento distorcido do sexo. Isso não poderia ser diferente no meio
evangélico, apesar da intensa pregação em meios fundamentalistas contra a
apresentadora, que chegou a ser até mesmo satanizada – quem não se
lembra dos boatos de que ela seria adoradora de eXU e XAngô, o que teria
originado seu apelido?
Obviamente não sei de casos de crianças filhos
de crentes que dançaram na boquinha da garrafa (mas não duvido que
tenham ocorrido casos assim); afinal, sexo e sexualidade sempre foram
assuntos malditos dentro do sistema religioso em que muitos vivem. Mas é
claro que, como membros de uma sociedade adoecida, muitos jovens
evangélicos foram atingidos pelo erotismo infantil de Xuxa.
Eu sempre pensei sobre a razão de muitas
cantoras de grupos evangélicos cantarem de modo extremamente sensual.
Algumas (e alguns) artistas gospel cantando e gemendo
“Paaaaaaaaaaaiiiii...” me trazem arrepios – certa vez ouvi uma
apresentação, em CD, de determinado expoente gospel em que não sabia se o
sujeito estava tendo um AVC ou um orgasmo (talvez os dois ao mesmo
tempo).
Também sempre achei estranho como até mesmo cantores homens
ficarem cantando “eu sou do meu amado”, numa clara falta de
contextualização de Cantares, abrindo caminho para todo tipo de
interpretações homoafetivas, além de alguns dançarem feito bambis sob
efeito de LSD. Sei que apenas a influência da Xuxa não é suficiente para
um quadro desses. Há de se pensar também no evangelho rarefeito que é
ensinado hoje em dia por aí, misturado com dicas de bem estar e
autoajuda – dependendo da igreja que se freqüenta, um manual do SEBRAE
edifica mais. Essa insistência de querer mostrar o membro de igreja
sempre como o “vencedor” está criando uma geração de mimados e
desajustados para a vida. Mas sei que, além desses ingredientes, ainda
faltava algo para explicar o atual quadro de descalabro litúrgico
brasileiro.
Como Deus é bom e Sua misericórdia dura
para sempre, Ele me mostrou um terceiro componente nesta equação
erótico-espiritual. Caiu em minhas mãos um pequeno livro de Anselm Grün,
monge beneditino alemão que está tendo bom espaço entre os católicos. E
sua aceitação se deve aos seus méritos, pois é um bom escritor na área
da espiritualidade cristã. Lendo seu livro “Espiritualidade e
entusiasmo” (Ed. Paulinas), me deparo com algo que me esclareceu sobre
nossa liturgia. Fazendo um pequeno histórico sobre o desenvolvimento da
mística na história, ele descreve aquilo que é chamado de “mística do
amor”, um tipo de espiritualidade que se desenvolveu na Idade Média.
Diz-nos Grün:
Na mística do amor – sobretudo na mística feminina da Idade Média –, trata-se do amor a Jesus Cristo, ou do amor de Deus, que se aproxima do homem de uma maneira feminina, antes da forma masculina. A mística do amor praticada pelas beguinas – mulheres que, sem pronunciar votos, viviam livremente em grupos espalhados nos Países Baixos e na Bélgica, nos séculos XIII e XIV –, era sobretudo uma mística nupcial. Para elas, Jesus era o noivo que abraça a pessoa mística. Essas místicas falavam sobre suas experiências numa linguagem erótica. Nisso era muito apreciada a interpretação do Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. (...) As místicas falam sobre o namoro divino, em que podem alegrar-se da proximidade de seu noivo divino. (...) a união com o Amado nunca é um fundir-se ou dissolver-se; é um “doce abraço” ou um “beijo espiritual” (p. 44, 45 – grifo meu).
Portanto, este é o terceiro elemento que
faltava: a erotização do louvor conforme praticado pelas beguinas na
Europa medieval. Como a igreja evangélica brasileira atravessa um
período de obscurantismo comparado muitas vezes ao da Idade Média (mas
sem as influências de S. Agostinho, S. Tomás de Aquino ou das nascentes
universidades), parece que estamos em casa...
Sei que a Bíblia me diz que meu
relacionamento com Deus envolve, também, a parte afetiva, emocional (Mt
22.37). Sei também que os calvinistas, de modo geral, precisamos tomar
cuidado com uma espécie de embotamento emocional que pode advir de
estudos teológicos malfeitos e vivências eclesiais falhas. Mas nada,
absolutamente nada, me autoriza a ter um relacionamento amoroso com Deus
com base no erotismo. A dimensão erótica deve ser vivenciada entre um
homem e uma mulher no matrimônio; com Deus, a dimensão do amor é o
ágape, e envolve casados, solteiros, eunucos, crianças, adultos, etc.,
em um relacionamento vivo, verdadeiro e pessoal com o Eterno. Cantar
para Deus “abraça-me”, ou entoar um mantra dizendo que está “doente de
amor”, é fugir completa e totalmente do sentido do amor de Deus revelado
em Cristo nas Escrituras, esbarrando perigosamente no risco de se
adorar um deus alheio à revelação bíblica.
Uma geração que
cresceu assistindo aos programas da Xuxa entoa canções amorosas
pretensamente voltadas a Deus, mas usando conceitos e categorias de
pensamento próprias de um relacionamento puramente humano, chamando isso
de louvor, com grande aprovação do povo, que compra seus CDs e DVDs e
alimenta a máquina. Uma liderança eclesial que falta com sua obrigação
de ensinar o povo acerca da pura e verdadeira Palavra de Deus,
preferindo repassar conceitos de empreendedorismo, vitória a qualquer
preço e estímulo ao ego; uma mentalidade intensamente hedonista, marca
de nosso tempo, que se torna presente com toda força através de um
misticismo medieval em que o erótico se confunde com o metafísico. Esta é
a estrutura que mantém a indústria de entretenimento gospel brasileira,
e porque não dizer, mundial.
Digão preferia o Sítio do Picapau Amarelo, para o Genizah
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