Os chifres do Papa
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Hermes C. Fernandes
Ele está entre nós. O primeiro Papa latino-americano. Logo em seu primeiro pronunciamento à nação, Francisco disse: “Não tenho outro nem prata, mas trago o que de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo!”. Sou tentado a acreditar que, embora jesuíta, este papa tem mesmo o coração de um franciscano, revelado em sua postura despojada e humilde. Conta-se que certa vez Tomás de Aquino, o grande teólogo, foi convidado pelo papa a visitar sua catedral em Roma. Enquanto apontava-lhe todo o ouro e a prata que havia no teto e nos muros, Tomás teria comentado: “Você se lembra que o nosso primeiro papa, Pedro, disse: Não tenho ouro nem prata?”. Pelo que o papa respondeu: “O nosso primeiro papa disse isso, mas hoje já não dizemos isso. Olhe o teto, os muros; agora temos ouro e temos prata”. Sem titubear, Tomás de Aquino responder: “Sim, agora temos ouro e prata, mas já não podemos dizer “em nome de Jesus, levanta-te e anda!”. Tomás de Aquino constatou que o poder terreno havia substituído o poder do Espírito Santo.
Ouvir do papa Francisco aquela frase me encheu de esperança quanto ao futuro dos mais de um bilhão de católicos no mundo. Quem sabe este papa não protagonizará uma revolução sem precedentes na história eclesiástica?
Já há quem queira demonizá-lo, apontando-o como forte candidato a anticristo. Pastores de renome criticam aos colegas que demonstram qualquer apoio à vinda do papa ao Brasil ou à Jornada Mundial da Juventude, como se os tais estivessem traindo a causa do evangelho. Alguns até identificaram chifres nas pontas do M da TIMES, que se insinua por trás da imagem do papa na capa da revista. Talvez desconheçam o fato de que nem mesmo Billy Graham, o maior evangelista da história protestante, escapou desta irônica coincidência.
Dizem: Como podem apoiar uma instituição responsável pela morte de milhões de pessoas durante a Inquisição?
Não se pode negar que a história da igreja católica está pontilhada de fatos vergonhosos. Todavia, o mesmo pode se dizer da história de qualquer outra religião, inclusive da protestante. Também tivemos nossa própria Inquisição. Perseguimos e matamos bruxas em Salém, Estados Unidos, e em diversas partes do mundo. E o que dizer de regimes como do Apartheid criados por protestantes de origem holandesa na África do Sul, responsável pela segregação dos negros em sua própria terra? E a Ku Klux Klan formada por cristãos brancos que espalharam o ódio contra os negros nos EUA, incendiando suas casas e igrejas?
É triste verificar a barbaridade praticada contra cristãos por muçulmanos radicais em pleno século XXI. Recentemente assisti a um vídeo em que um jovem cristão era decapitado a sangue frio. Porém, não posso me esquecer que barbaridades parecidas foram praticas por cristãos ao longo dos séculos. As cruzadas patrocinadas pela igreja católica foram responsáveis pela morte de milhares de muçulmanos, sem contar os estupros, as torturas e a pilhagem.
Ora, se todos temos telhados de vidro, que tal virar a página e acreditar que mesmo uma instituição milenar como a igreja católica possa sofrer uma guinada?
As mesmas tradições religiosas que protagonizaram capítulos execráveis também foram responsáveis por muitos avanços. Se os cristãos criaram a universidade, foram os seguidores do Corão que criaram o hospital. Se os protestantes têm tão grande apreço pelas Escrituras, deveriam agradecer aos mosteiros católicos que as preservaram por séculos. Todas as tradições nos legaram anjos e demônios, gênios e monstros. Hitler era católico! Gandhi era hindu. Luther King, protestante. Madre Teresa, católica. Mandela, protestante. Malcolm X, muçulmano. Einsten, judeu. Charles Chaplin, ateu. Oscar Niemeyer, ateu. Monteiro Lobato, ateu. C.S.Lewis, protestante. R.R.Tolkien, católico. Pablo Picasso, ateu. Leonardo da Vinci, católico. Che Guevara, ateu. Pinochet, católico. Osama Bin Laden, muçulmano. Michael Jackson, testemunha de Jeová. Elvis Presley, protestante.
Qualquer um pode usar sua crença para justificar sua falta de caráter e amor. Mas esta mesma crença pode servir como estímulo para que o homem faça o bem.
Portanto, não julguemos alguém pelo credo que professa, mas pelo caráter que revela.
Achar, por exemplo, que o Brasil se tornaria uma nação mais justa se tão-somente tivéssemos um presidente evangélico é, no mínimo, ingenuidade e falta de conhecimento histórico. Já tivemos dois presidentes evangélicos, um presbiteriano (Café Filho) e outro luterano (Ernesto Geisel). O último foi um dos ditadores militares linha dura. Também tivemos um presidente ateu, Fernando Henrique Cardoso, que foi o responsável por colocar o Brasil de volta nos trilhos do desenvolvimento econômico.
Cada um dá o que tem recebido. E de acordo com as Escrituras, seremos julgados justamente por aquilo que recebemos. Por isso, meu coração rejubila quando ouço aquela frase dos lábios do Pontífice católico.
Quando nos recusamos a partilhar da alegria dos católicos por receberem seu líder, justificando-nos na história de perseguição promovida pela igreja aos cristãos protestantes no passado, estamos nos esquecendo de que recebemos perdão por nossos erros e que, portanto, deveríamos igualmente perdoar tantos quantos um dia erraram. Não podemos cobrar deles o que, todavia, não receberam. Mas também não temos o direito de negar-lhes o que recebemos. Ademais, a vaga de acusador já foi preenchida.
Se tivermos que cobrar de alguém, cobremos de nós mesmos. E se tivermos que ser misericordiosos, sejamos com os que erram por faltar-lhes o conhecimento necessário.
Vale aqui a recomendação de Paulo: “Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado (a perfeição), mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam (inclusive os erros alheios) e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus. Todos nós que alcançamos a maturidade devemos ver as coisas dessa forma, e se em algum aspecto vocês pensam de modo diferente, isso também Deus lhes esclarecerá. Tão-somente vivamos de acordo com o que já alcançamos” (Fp.3:13-16).
Que tal deixarmos de ficar procurando chifres em cavalos?
Hermes C. Fernandes é amigo do Genizah
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