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Secular ou sagrado? A espiritualidade de uma ciclovia.

Bráulia Ribeiro

Tenho um pé de carambola no quintal que dá o ano inteiro. Tenho orgulho deste quintal com sete tipos diferentes de frutas. Custou pra crescer neste solo desértico da Amazônia. Desértico sim, infelizmente, o solo daqui quando se tira a floresta nativa. Sobra nada quase, o sol escaldante, e as plantas teimosas da capoeira. Chegamos nesta terra a mata já havia sido tirada, nos sobrou o capoeiral. Depois de anos o  capoeiral virou pomar e olho para sua abundância com uma surpresa constante. Redenção é  possível para a terra também.

Mas só existe um certo número de coisas que se pode fazer com carambola. Dá pra fazer suco, doce, geléia, com um certo esforço dá pra colocar em pratos salgados. Tentei outro dia imitar o Alex Atala, mestre das misturas inusitadas,  e fiz frango com carambola. O resultado saiu no mínimo duvidoso. Lá  ficam então as carambolas inusáveis,  madurando esperando ser colhidas até que caem desapontadas pelo chão.

Fui visitar a cadeia de adolescentes da cidade. Sei que não se chama cadeia, e que não deveria se parecer nem de longe com uma, mas é uma cadeia sim com todas as mazelas que isto significa. Celas cheias e imundas, confinamento integral, violência, sexualidade perversa e inflacionada, falta de opções de aprendizado, de reconstrução pessoal.

De um lugar destes não se volta. Seu corpo sai, mas sua alma fica lá presa com jovens franzinos, sedenta de ar e respostas. Me chocou saber que uma grande porcentagem deles vieram de famílias evangélicas, as paredes perplexas estão cheias de “Jesus Salva” convivendo com palavrões.

O que aconteceu com o poder do nosso evangelho? Há algo de podre no reino da Dinamarca. Outro dia pisando numa carambola e noutra que apodreciam doces debaixo do pé, não deu pra evitar uma comparação mental conosco no Brasil de hoje. Do mesmo jeito que o fruto pelo seu excesso me cansou, nós também reduzimos a mensagem do evangelho a um significado só. Apenas a salvação importa, apenas encher as cadeiras dos templos. Tentamos ser relevantes, mas nosso fruto é sempre o mesmo.

Temos um sabor só, uma cor, um fruto só: religião.   Se vamos ao presídio de crianças falamos de salvação, o que não é nada novo para os presos,  se vamos a TV falamos de salvação, se vamos ao congresso achamos que ao colocar a Bíblia na tribuna e evangelizar mais deputados, estamos mudando a sociedade. Usamos dinheiro público para construir catedrais, beneficiamos os crentes com leis circunstanciais e oportunistas.  Se fazemos trabalho social o fazemos na maior parte das vezes para poder “converter” mais pessoas. Todos nossos esforços estão voltados para produzir um único fruto: mais prosélitos em nossos templos. Pensamos em nossa tarefa como sendo unicamente a de salvar indivíduos.

Usamos o óculos grego para ler a Bíblia. Na cosmovisão greco-cristã influenciada pelo platonismo a alma/espírito do indivíduo é a única matéria prima possível para a ação do Espírito Santo com um produto único mais óbvio, a sua salvação deste mundo material corrupto para o perfeito mundo do espírito.

Se restaurarmos a compreensão tribal da mensagem de Deus, recuperamos dois pilares fundamentais na visão de mundo judaico-cristã, a identidade social, e a visão do ser humano como um todo, espírito e matéria.  Entendemos que o grupo, assim como o indivíduo, também pode ser ou não “salvo”, refletir ou não os valores de Deus na prática social, nas leis, na forma de ser cidade.  Existe a  dimensão sociológica do amai-vos uns aos outros.

Temos que entender o plano de Deus para a sociedade como um todo. Expressar o amor para a sociedade à partir de nossa identidade coletiva é parte da nossa missão tanto quanto lutar pela salvação de seus indivíduos.

Se pensássemos o cristianismo além da mera salvação, saberíamos   o projeto concreto de Deus  para o mundo de negócios, para as artes, para o sistema educacional, para a administração pública. Haveriam outros frutos possíveis para nossa fé evangélica, além de igrejas cheias. Trabalharíamos com a essência divina da sociedade humana antes que ela se desintegrasse, abraçaríamos a  cidade antes que nela se instalasse o caos.

Olhando as carambolas apodrecidas debaixo do pé, comecei a sonhar com uma cidade melhor, onde as igrejas se uniriam para urbanizar seus bairros. Como prova de amor pelo bairro construiriam praças e áreas de lazer. Imaginei que um arquiteto cristão poderia  fazer o projeto de uma ciclovia linda, arborizada, de graça, a prefeitura apoiaria, os crentes mesmo plantariam e cuidariam de muitas árvores nas ruas para sombreá-la como prova de nosso amor pela meio-ambiente e pela cidade. Os jovens poderiam executar o projeto. A ciclovia iria trazer para a população que depende da bicicleta para se transportar um senso de valor e dignidade.

Imaginei que se amássemos a cidade, os artistas que se sentam aos domingos em nossos bancos sairiam às ruas e fariam oficinas para crianças ociosas, e na tinta elas encontriam as cores que faltam em suas vidas.  Nossos cantores entreteriam nas praças os velhinhos e os pobres com suaves serenatas. Belos jardins seriam construídos a cada três ruas, e que as crianças da rua participem de seu cultivo…
Se amássemos a cidade, seríamos capazes de  articular nossa visão de mundo tão bem e as pessoas se apaixonariam  pelo modelo social exemplificado por nós. Mostraríamos na prática o amor incondicional e integral de Deus para todas as pessoas, independente de cor, classe social, gênero. Não guerrearíamos com a sociedade, mas ao contrário, nos uniríamos a ela para combater problemas e propor soluções. Mas por enquanto só temos um fruto evangélico que cansamos de usar da mesma maneira sempre  e que agora apodrece no chão em meio a pacotes de dinheiro e  documentos rasgados e queimados.

Bráulia Ribeiro é da turma do Genizah



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  1. Maravilhoso seu texto, no começo fiquei meu sem saber onde vc queria chegar, mas depois entendi e realmente é isso tudo que nos falta, pena.

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  2. É isso aí, as carambolas da minha igreja apodreceram tanto que, por não suportar mais o cheiro, estou louco pra mudar de quintal... rsrsrs

    É realmente triste perceber que o cristianismo, com dois mil anos de história, ainda não tenha descoberto aquele Jesus intimamente ligado com as causas da sociedade e que, sem preconceitos ou fanatismos, vivia seus ideais em meio aos homens comuns de seu tempo e não escondido entre quatro paredes, se fechando numa espécie de clube secreto, o clube "dos melhores"...

    É podre mesmo!

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  3. Agradeço a leitura proporcionada. Com o simples desejo de ajudar, tão somente isso, faço uma sugestão na redação. Entendi o sentido do texto, mas penso que não custa nada deixar bem claro isso. Sugiro substituir a expressão "se pensássemos o cristianismo além da mera salvação" por "se pensássemos o cristianismo além da mera (ou limitada) leitura que fazemos da salvação". Deixo essa proposta, porque entendo, e sei que a autora também, que a salvação de/em Cristo Jesus nunca é "mera". O problema não está na salvação, mas na leitura e dimensão que fazemos dela. Uma leitura errada da salvação acomoda e faz com que o "salvo" espere a morte. Sabemos que não é por aí. Com a alegria de ler e opinar, me despeço.

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  4. Texto magnífico. Também penso da mesma forma. Ontem eu assisti um documentário chamado "A casa dos mortos" que mostra a forma como a justiça trata os loucos que cometem crimes. Não há ressocialização, nem tratamento. Enquanto um preso "normal" como o Fernandinho Beiramar pode ficar no máximo 30 anos na cadeia, os loucos mesmo que cometam um pequeno delito ficam presos pelo resto da vida, porque possuem um risco de periculosidade. O interessante é que no vídeo tinha uma mulher esbravejando plavras da bíblia, digo esbravejando porque não dava pra entender o que ela falava, se eu não entendia imagina um psicótico.

    Eu nem arrisco a dizer que as pessoas se preoucupam só com a salvação. Elas se preoucupam com o crescimento do "povo evangélico", isso muitas vezes tem mais haver com a nossa vaidade do que com o amor pelos perdidos.
    Mas como falar pra um povo que pensa que o mundo tem mais é que pegar fogo e que jesus vai voltar amanha e que nós não temos responsabilidade nenhuma pra com o nosso planeta?
    Que a graça de Deus continue sendo derramada na sua vida e sobre seu trabalho!

    Layssa

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  5. O que vemos hoje são templos "empresas", verdadeiras instituições, preocupados em aumentar o rol de membros para conseqüentemente aumentarem a arrecadação de dízimos e ofertas, para construírem mais templos e engariarem mais membros... em um ciclo vicio$o... sem contar o nascimento de "grandes" ministérios de louvor, preocupados em gravar CDs e poderem arrecadar mais pro "Reino"!? Com seus louvores de vai pra esquerda, pra direita, pra frente, pra trás, pra vala...

    Falta um povo compromissado com o verdadeiro "Reino de Deus", que busca santificar-se mais e mais a cada dia, que anda em fé, que lê a Palavra de Deus diariamente (alimento para o espírito e pra alma), que ora sem cessar!!! Se o povo fizesse disso uma prática diária, repito: orar, ler a bíblia (no Espírito), santificar-se e crer, seria fácil colocar em prática um movimento de união em prol de melhorar cidades, governos, estados... dando o maior testemunho que o povo de Deus poderia dar: “vidas transformadas, transformando uma socidade”! Jesus por duas vezes multiplicou pães e peixes, ajudou enfermos e doentes... e nós evangélicos da atualidade estamos preocupados em “louvorzão”, aumentar número de membros e arrecadar dízimos e ofertas...

    Isac Amaral.
    São Gonçalo/RJ

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  6. Seu comentário apenas confirma a visão marxista de análise da sociedade. É assim que pensam Frei Beta, Leonardo Bofe e um monte de intelectuais desonestos adeptos do comunismo e da maldita Teologia da Libertação, que tentam jogar para fora do indivíduo a culpa pelas mazelas da sociedade. A Senhora deve estar se perguntando também porque Jesus não chamou o povo de jerusalém e armou uma revolta contra os romanos, os herodianos, fariseus, saduceus e outros grupos que oprimiam o povo. Sorrateiramente você escarnece da "cosmovisão greco-cristã", que se incluirmos o romanismo teremos justamente o maior patrimônio cultural e espiritual que a humanidade já desfrutou. Ou você acha que a "cosmovisão mulçumana" ou o mundo árabe contribuiram mais para a evolução cultural e espiritual da humanidade. Sra Bráulia, a desgraça da humanidade, especialmente da américa latina foi justamente o "sucesso" da malícia gramsciana, que conseguiu contaminar a mente dos nossos jovens desde a escola com a "cosmovisão" marxista. Todo homem tem sim o lívre-arbítrio de escolher o que é certo e o que é errado.A cadeia que a senhora se refere não é para jovens infratores como vocês gostam de chamar, é para bandidos com idade até 17 anos e 11 meses, cumprindo pena máxima de 2 anos de reclusão por crimes que chegam ao assassinato de inocentes e indefesos. Vivemos num ambiente de terror onde são assassinados 50.000 pessoas por ano, mais que no Iraque, Afeganistão e outros infernos, por culpa da impunidade e da desonestidade de nossos "intelectuais" de esquerda e dos teólogos da libertação que visando um porvir para implantação de um regime marxista, preferem apoiar o crime até que a sociedade lhes permita exercer o poder total sobre nossas vidas. Satanás está orgulhoso desse plano.
    Edvaldo

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  7. Disse o Edvaldo: "por culpa da impunidade e da desonestidade de nossos 'intelectuais' de esquerda e dos teólogos da libertação que visando um porvir para implantação de um regime marxista, preferem apoiar o crime até que a sociedade lhes permita exercer o poder total sobre nossas vidas. Satanás está orgulhoso desse plano"

    Apoiar o crime?... como dizem aqui no Ceará: "é o quê, galinha?"

    Ei, Danilo, este é metido a intelectual, mas acho que merece o "cê tu uma bênça" da semana...

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  8. É, Deus enviou seu Filho amado meramente pra nos salvar, segundo a sra. Braulia. Ele devia estar muito ocupado com a criação pra ter um propósito tão insignificante como esse né? Afinal porquê Deus quer ter uma família grande, de muitos filhos quando ele já tem a Jesus, o Filho amado? João Batista foi muito louco mesmo pra desperdiçar sua vida só comendo gafanhotos e mel, e apenas se intitulando como uma voz, que anunciava aquele que viria após ele trazendo salvação. E o que dizer dos apóstolos que caminhavam léguas apenas para dizer a todos que esta salvação havia chegado e estava disponível a eles. Isso sem mencionar os mártires que morreram por esta salvação. Afinal como Paulo falava, ele ainda não a havia alcançando, mas prosseguia na soberana vocação. Realmente concordo que é melhor todos abandonarem os bancos de suas igrejas e se empenharem numa limpeza urbana, em melhorar a aparência de sua cidade. Mas de que adiantará fazer tudo isso sem ter alcançado salvação??? Olhe pro Haiti devastado pelas suas mazelas, é óbvio que aquelas pessoas necessitam de ter suprida suas carencias, como o seu país reestruturado. Mas eles necessitam muito mais de Deus! Muito mais de conhecer o amor verdadeiro e alcançar salvação em Cristo Jesus! Quem sabe se o ser humano naturalmente buscasse a Deus não seriam necessárias as igrejas. Mas infelizmente isso não é verdade, o coração do homem é corrompido, e ele não ama a Deus. Por isso são necessárias as igrejas, pra fortalecer o corpo do qual Cristo é o cabeça. Como a senhora deve saber, na Inglaterra na época do avivamento as prisões e hospitais ficaram vazios! Deus se movia naquela nação! E isso foi natural, porque todos reconheciam-se pecadores diante de Deus, verdadeiramente necessitados. O que é então mais importante, pregar a salvação e agir no intuito de alcançá-la ou nos preocuparmos com o físico e quem sabe um dia alcançar salvação?

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  9. Talvez exista uma confusão aí nesse texto. Isso, porque o Evangelho transforma a criatura em filho de Deus. Sendo assim, tudo que é do meu Pai é do meu interesse.
    No entanto, com a intensificação da transformação de criatura em "pau mandado", ou "sem noção" para nada serve, tanto para o Reino de Deus quanto para o nosso planeta, porque enquanto permanecer criatura o egoísmo impede de servir a Deus.
    O Evangelho é o Poder de Deus!
    Imagino que todos aqui saibam disso e espero que tenham experimentado também.
    Fico preocupado quando percebo uma grande preocupação com as coisas do que com as pessoas, no sentido da transformação que precisam passar.
    Brilhar, resplandecer conforme nos manda o Senhor. É assim que precisamos viver. As outras coisas nos serão acrescentadas.
    Dc. Henri - Membro da Comunhão Batista Clássica.

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  10. A necessidade da igreja se engajar em trabalhos que visem a melhora da sociedade como um todo não é um ato que necessariamente exclui a pregação da Salvação - que é a nossa comissão e não ajudar a velhinha a atravessar a rua. O texto é pedestre e induz a erro leitores mais incautos flertando perigosamente com um liberalismo teológico ("mera salvação", cuma?) que faria Ricardo Gondim e seus asseclas baterem palmas. Isso é que é trabalhar pro capeta, sinceramente...

    E cada vez mais sinto que o Genizah está perdendo o foco e demonstrando falta de critério na seleção dos textos e de seus autores. Triste... Do jeito que vai, se tornará apenas um blog rabugento ao invés de apologético com direito a algumas heresias sutis.

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  11. Bem...
    Eu gostei do texto. Realmente a autora expõe de forma muito livre seu pensamento.
    Contudo não posso deixar de concordar com alguns anônimos.
    A salvação que Jesus conquistou não é mero fruto. E ele não está jogado ao chão.
    Na verdade é O Fruto.
    Dela procedem todas os demais frutos que são necessários para que se alcance o que o texto sugere.
    O Fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio.
    São estas características que, desenvolvidas em nós, nos fornecem as "armas" para construir uma sociedade melhor. Qualquer individuo que queira realizar o bem de fato, precisa ser regenerado pelo Espírito. isto é salvação. E salvação não se propaga senão pela pregação da Palavra.
    Assim, devemos buscar sim a salvação do indivíduo, para uma vez salvos possamos juntos lutar por uma sociedade melhor.

    Obrigado.
    Marcelo.

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  12. Marcelo, brilhante. Fecha a conta e passa a régua.

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  13. Caramba! Escrever bem - no sentido ortográfico - é bom; escrever bem - no sentido politicamente correto (eca!!!) pode ser bom (pra alguns)porque junta ecologia, solidariedade, honestidade, valores cristãos pra resumir... Mas esse "mera salvação" foi pra acabar!!! Ah, por favor!!! Não dá pra chamar isso de um bom texto só porque a autora já escreveu textos realmente bons. Desta vez, errou feio. Pelo menos, na minha - nada modesta - opinião.

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