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O que os Reformados Entendem por Livre Arbítrio?



Solano Portela


A questão e as controvérsias sobre a existência ou não do livre arbítrio são antigas. A discussão se faz presente, com freqüência, no meio presbiteriano, porque somos reformados. Esse termo, reformados, significa que entendemos que as doutrinas resgatadas pela reforma do século 16, e expressas nos documentos e escritos históricos dos reformadores e dos que seguiram em suas pisadas, expressam da melhor maneira os ensinamentos da Palavra de Deus.

Ocorre que nem sempre os que defendem, ou os que negam o livre arbítrio, se preocupam em um entendimento maior do conceito, nem em uma abordagem mais ampla dos textos bíblicos pertinentes ao tema compreendido nessa “liberdade”. Nesse sentido, tanto a defesa, como o ataque, podem levar a uma distorção do ensinamento bíblico e por isso é importante examinarmos em maior detalhe o que realmente entendemos por livre arbítrio.

Podemos fazer isso indo até o nosso símbolo de fé – a Confissão de Westminster (CFW: 1642-47), não porque tenhamos ali a palavra final, mas porque a Confissão nos direciona à Escritura, sistematizando, em proposições concisas, as doutrinas chaves da fé cristã. É nela que encontramos exatamente todo um trecho exatamente sobre o livre arbítrio. O capítulo 9 da CFW tem cinco sessões. Nelas lemos que a Bíblia nos ensina que:

1. A natureza humana não possui determinação intrínseca (natural) para o bem ou para o mal. Essa é a liberdade da natureza humana, procedente da estrutura da criação, e a Bíblia, com freqüência e naturalidade, faz referência a essa situação, apelando ao “querer” das pessoas (“te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas” – Dt 30.19; “... não quereis vir a mim para terdes vida” – Jo 5.40; “... Elias já veio, e não o reconheceram; antes, fizeram com ele tudo quanto quiseram” – Mt 17.12).

2. Entretanto, essa plena liberdade existiu no que a CFW chama de “estado de inocência”, ou seja, até a queda em pecado. No Cap. 4, seção 2, falando “da Criação”, a CFW indica que nossos primeiros pais foram “deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável”. Voltando ao Cap. 9, quando o pecado entrou no mundo o homem perdeu essa “liberdade e poder” (“...Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” – Ec 7.29).

3. O livre arbítrio, portanto, faz parte da natureza criada, mas não subsiste na natureza caída. Como pecadores, não podemos realizar qualquer “bem espiritual” que leve à salvação. Nesse sentido, toda a raça humana está morta “no pecado”. As pessoas são incapazes, cegas pelo pecado, de converter-se, ou mesmo “de preparar-se para isso”. Perdemos, portanto, o livre arbítrio, com a queda em pecado (“... o pendor da carne é inimizade contra Deus... os que estão na carne não podem agradar a Deus” – Ro 8.7-8; “... Não há justo, nem um sequer... não há quem busque a Deus; todos se extraviaram...” – Ro 3.10 a 12; “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” – Jo 6.44).

4. A situação atual da humanidade, sem livre arbítrio, é de escravidão ao pecado, mas a conversão, operada pelo toque regenerador do Espírito Santo é a libertação dessa escravidão. É a graça de Deus que habilita o homem a querer fazer o que é espiritualmente bom. Como permanecemos ainda pecadores e vivemos em um mundo que é pecado em pecado, não podemos realizar o bem perfeito, e eventualmente caímos também em pecado, mesmo depois de salvos ( “... todo o que comete pecado é escravo do pecado... Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” – Jo 8.34 e 36; “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor” – Cl 1.13; “... uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” – Ro 6.18; “... nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto” – Ro 7.15),.

5. Somente na eternidade, em nossa glorificação, é que a nossa vontade “se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só” ( “Ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” – 1 Jo 3.2).

Esses pontos estabelecem o significado teológico da expressão livre arbítrio – a possibilidade de querer realizar o bem, que tem validade espiritual. Nesse sentido, as pessoas não o possuem em função do pecado e da natureza pecaminosa, que as conservam sob escravidão, fazendo-as escolher o pecado.

A CFW ainda faz outras referências ao livre arbítrio, por exemplo, diz que Deus executa o seu plano “segundo o seu arbítrio” (Cap. 5, seção 3); diz ainda que a perseverança dos santos, ou seja a segurança dos crentes em um estado de salvação “não depende do livre arbítrio deles”, mas “do livre e imutável amor de Deus Pai” (Cap. 17, seção 2). Simultaneamente, uma liberdade de ação, e conseqüentes responsabilidades, é reconhecida, na CFW. No Cap. 20, seção 1, ela indica que os crentes procuram seguir os preceitos de Deus “... não movidos de um medo servil, mas de amor filial e espírito voluntário”. Por último, a CFW fala da liberdade de consciência (Cap. 20, seção 2), registrando que “só Deus é o senhor da consciência”; fala da “verdadeira liberdade de consciência”, e avisa contra “destruir a liberdade de consciência”, bem como contra nunca utilizar essa liberdade como pretexto para cometer “qualquer pecado” ou concupiscência, pois o propósito dela é servir “ao Senhor em santidade e justiça, diante dele todos os dias da nossa vida”.

Devemos entender, assim, que quando indicamos que não possuímos livre arbítrio, não significa que somos robôs, agindo mecanicamente em um teatro da vida. Esse é o grande mistério: como Deus consegue nos dar essas faculdades decisórias, mas, ainda assim, cumprir o seu plano de forma imutável. Mais uma vez, é a CFW, que nos esclarece (Cap 3, seção 1 – “Dos eternos de Deus”), indicando que Deus “ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece”, porém “nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias”.

Como reformados, precisamos cuidar, portanto, ao contestarmos o livre arbítrio, de não suprimirmos esse aspecto – de que decidimos organicamente as questões da nossa vida, mas Deus, soberanamente cumpre seus propósitos. Se assim fizermos, reduzimos os atos de Deus a um modus operandi que não é o dele, nem é o ensinado na Bíblia. Talvez uma distinção que pode auxiliar a nossa compreensão e dar maior precisão ao tratamento desse conceito, é a utilização do termo livre agência. Livre arbítrio, no sentido já explicado, foi perdido. Esteve presente em Adão e Eva, mas não se encontra na humanidade caída. Livre agência seria a capacidade recebida de Deus de planejarmos os nossos passos (Ti 4.13), de decidirmos o nosso caminhar. Quando entendemos bem esse aspecto, nunca vamos achar que essas decisões são autônomas, ou “desligadas” do plano de Deus (Ti 4.14-15). É ele que opera em nós “tanto o querer como o realizar” (Fl 2.13) e o faz milagrosamente, imperceptivelmente, sem “violentar a vontade da criatura”. Longe de ser uma contradição, esse entendimento reformado, retrata Deus em toda sua majestade, ao lado de criaturas preciosas. Livres agentes, que perderam a possibilidade de escolha do bem (livre arbítrio), mas continuam formadas à imagem e semelhança da divindade, necessitadas da redenção realizada em Cristo Jesus e aplicada nas vidas dos que constituirão o Povo de Deus, pelo seu Espírito Santo.


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Postar um comentário

  1. Estado de inocência = Queda em pecado? Não entendi.
    Quando ocorre (ou ocorreu)a queda em pecado?

    Bom... desculpem as palavras, mas isso tá me cheirando a "se não pode convencê-los, confunda-os".

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  2. Sempre que debatia esse assunto com outras pessoas ficava na dúvida.
    Esse artigo foi mt esclarecedor. Mt bom!
    Deus abençõe

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  3. Irmãos nem perdi tempo para ler, já perdi muito do meu tempo lendo sobre isso e faço as minhas palavras as mesmas do Irmão Marcelo Lima e digo mais nem eles mesmos entendem o que falam.

    Fraternalmente em Cristo:

    Dc. Cristiano

    Maranata.

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  4. Exatamente isso! Livre agência, sim, livre arbítrio , não.

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  5. Muito bom e esclarecedor o texto. Parabéns.

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  6. Respondendo ao Marcelo Lima, vou expliar o que entendi (e não sou cristão reformado, apenas tenho estudado este assunto): o texto não diz que o estado de inocência é igual a queda em pecado, mas que perdurou até a queda. Releia o post que você verá isto lá.

    A queda a que se refere o artigo é a Queda de Adão (acho que está subentendido). Não está falando de nosso tempo: que nascemos com livre arbítrio e depois caímos em pecado e o perdemos, está se refeindo ao passado.

    Como disse não sou especialista no assunto, mas procuro entender o que está escrito. No caso me ajudou a entender um pouco essa posição tão controversa em nosso meio.

    Graça e paz, sempre.
    Marcus Vinicius

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  7. Marcus Vinicius, este entendimento também é o meu, de que a queda é a de Adão. Disso eu não tenho dúvidas. Quando questionei, e por isso fiz aquela brincadeira no fim, é que o texto está confuso. Para citar a Liberdade da Natureza Humana (ver item 1), o autor cita exemplos de alguns textos, inclusive de livros do Novo Testamento. Utilizando as expressões do autor, tais textos caracterizam uma apelação "ao querer" das pessoas.

    Acontece que, em seguida, no item 2, ele diz que essa liberdade só existiu DURANTE este "estado de inocência", ou seja, ATÉ a queda em pecado.

    Então, pela lógica, temos:

    1. Liberdade da natureza humana (apelação ao querer das pessoas) só enquanto vigorou o estado de inocência;

    2. O estado de inocência durou até a queda (em Adão, acho rs);

    3. Após a queda de Adão, não haveria mais a tal liberdade (os quereres). "Quando o pecado entrou no mundo o homem perdeu essa “liberdade e poder”" (palavras do autor).

    Se o livre-arbítrio não subsiste na natureza caída, não entendo os versículos citados (todos pós-queda) para referenciar o que ele diz no item 1.

    Portanto, se ele não pode me convencer, está tentando me confundir... rs

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